Bifurcação

A cena espalhou-se pela internet. Uma pessoa que não vemos filma e narra o percurso de um jovem por um trecho de lavoura no sertão da Bahia, um caminho curto que ele vence meio andando, meio correndo, para chegar até o pai e contar que foi aprovado para o curso de Medicina de uma universidade pública.

O jovem, que se chama Sandro, encontra o pai roçando o mato com uma enxada, ao lado de mais dois homens e protegido do sol escaldante de Caculé, no polígono das secas, por um chapéu e camisa de mangas compridas. Parecendo hesitante, ele para a uns dois metros de distância dos três sertanejos que trabalham na terra, e só abraça o pai depois que a voz que narra o encontro diz “vai lá dar um abraço no seu pai, rapaz”.

O vídeo todo dura 1 minuto e 42 segundos. O pai só aparece em cena durante 35 segundos – o tempo de abraçar o filho com um só braço (o outro permanece segurando a enxada), chorar, enxugar as lágrimas com a palma da mão livre e voltar ao trabalho, já de costas para o filho.

Mais que a conquista de um menino humilde do sertão prestes a se tornar estudante de Medicina, é essa aparente rudeza que me comove no vídeo. Essa bifurcação de caminhos que se insinua ali, entre um filho que mal consegue falar de tanta emoção e um pai que não pode ou não sabe celebrar uma alegria por mais de meio minuto.

Penso que não é amor o que falta na cena. Ela é veladamente, mas também exuberantemente, amorosa. “Quando eu quebrar a perna você vai remendar essa porcaria, viu?”, diz a voz que acompanha Sandro, e que depois ficamos sabendo pela imprensa ser de um primo. O primo agradece a Nossa Senhora das Graças. Transborda orgulho. Não se contém. Não espera que o outro conte a novidade aos três agricultores. Mal avistam o grupo, já vai dizendo: “O mais novo estudante de Medicina aí, ó. Passou! Passou em Medicina”.

O pai, por sua vez, não diz uma palavra. Não toma a iniciativa de se aproximar, não dá sinal de vibração. Apenas retribui timidamente o abraço do filho, batendo-lhe nas costas com uma das mãos, grosseira do trabalho pesado. São as palavras que consegue dizer, essas pancadas fortes nas costas. São o amor que consegue expressar.

Enquanto se abraçam, eles choram – o filho ruidosamente; o pai, em silêncio. “Melhor chorar de alegria que de tristeza”, diz uma voz, que provavelmente é de um dos outros lavradores. Nenhum dos dois cumprimenta o menino que passou no vestibular. Continuam roçando.

Em segundos, o pai enxuga o rosto, dá as costas ao filho e também volta a roçar, como se a grande notícia não tivesse sido dada. Não faz o que faríamos muitos de nós – pular de alegria, gritar, largar o trabalho para comemorar. Não é desdém, não é incapacidade de compreender o tamanho da conquista do filho. É que foi assim que ensinaram a esse homem iletrado: é preciso trabalhar, é preciso enjeitar a emoção, é preciso engolir o choro e seguir, na tristeza ou na alegria.

Então ele volta para o destino que lhe coube, para o mundo que conhece. É na enxada que está o seu valor, foi dela que saiu o sustento dos filhos. É a enxada que lhe dá dignidade. E aí também reside o afeto: no pai que transpira para permitir ao filho o que a ele próprio sequer foi dado sonhar.

Sandro dá três passos e se afasta. Fica parado com as mãos na cintura enquanto os três homens já trabalham de novo na terra. Dali a pouco tempo ele vai pegar a estrada de 230 quilômetros que separa Caculé de Vitória da Conquista, onde fica o campus da UFBA para o qual foi aprovado. Que separa a roça da sala de aula. Que separa a enxada do diploma. Que separa seu destino do destino do pai.

***

Li recentemente O lugar, memórias de infância da francesa Annie Ernaux, que o professor Renato Perissinoto me indicou depois que publiquei aqui um texto sobre a angústia de não saber como era a voz do meu pai.

A prosa direta, quase fria, de Ernaux ao falar do distanciamento que se estabeleceu entre ela e o pai comerciante e inculto à medida que se instruiu e ascendeu social e intelectualmente reverbera em mim ao conhecer a história de Sandro. Talvez por isso a alegria de imaginar uma vida transformada pela educação é quase ofuscada por essa perspectiva de afastamento. Não no sentido de rompimento, mas de uma fratura irremediável entre dois mundos, algo ainda mais frequente e dramático em um país desigual como o nosso.

Muitos anos depois da morte do pai, Ernaux resolve contar sua história e tenta achar uma explicação: “Talvez eu escreva porque já não tínhamos nada para dizer um ao outro”.

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