O derretimento das derrotas protocolares

Suspeito que não estou sozinha quando digo que estou cansada. Muito cansada. 

Bastante cansada. Que outro advérbio de intensidade a gente tem aí à disposição? Assaz cansada. Demais cansada. E também os sinônimos: gasta, moída, quebrada. Tão tão tão exausta que estive em letra minúscula durante todo esse tempo. e não que a maiúscula me componha, perceba, é um exercício este o de deixar a capitular de lado, os inícios fálicos ostentosos, retornos triunfais. eles vendem, afinal. olha eu aqui, superando a superação e saindo, tal qual o protagonista de uma cena de gosto duvidoso, do meio do gelo-seco. por gelo-seco, leia-se, fundo do poço, um lugar psíquico que a escritora-sofredora conhece tão bem que eu jurava que não presenciaria tão cedo. não leu ninguém da segunda geração romântica? é de lá que vem a inspiração, você não sabe? não é parente de Lord Byron? escritora que é escritora escreve sob forte efeito de psicotrópicos, depois de viver experiências abismais, mas cura tudo escrevendo, óbvio. a página em branco é o melhor remédio. por isso, estou bem agora. nem terapia, nem cuidados médicos. resmas e resmas de papel sulfite e, pronto, curadíssima. estou testando todas os tipos de papel e aplicativo para em breve fazer uma resenha no meu novo canal do youtube, aliás. parece que, com moleskine, comprado em loja de aeroporto, é mais rápido. a ver. 

alertando para o fato de que mesmo este texto esteja mais próximo do desabafo do que de uma escrita literária, me inscrevo num lugar delicado de exposição: nas letras, também miúdas, do contrato que assinamos com a literatura e com a arte, está escrito que é preciso lançar livros, anunciar o término de um projeto, dar títulos aos textos. eu só quero ler, escrever, pensar – e guardar traumas e questões íntimas em potinhos muito bem guardados. pode? nananão, é preciso sofrer e materializar o sofrimento em produtos culturais ao alcance do like ou do cartão de crédito. artista que não sofre não vende. na outra raia olímpica, os efeitos colaterais longe dos holofotes: exaustão, cabeça bagunçada. tem uma hora que tudo derrete. literatura é hobby? pra alguns, sim. pra quem o faz todo santo dia, trabalho. a fadiga mental, neste job, é lesão por repetição. é preciso comemorar o parágrafo, a frase, o esboço. a internet não está aí pra gente poder editar a palavra imprecisa, avessa à impávida página impressa imexível? é preciso mais. quisera a literatura ser cura pra minha doença. muito do que veio dela e da pesquisa, da docência foi também sintoma, por aqui, do lado de dentro de um corpo que esteve muito próximo de desmoronar. logo eu, que há muito tempo não aceito ser domada por hormônios ou remédios, me rendi a um tratamento psiquiátrico. era uma questão de vida ou morte. sofri, afinal, ainda que não tenha escrito (só) sobre isso. a audácia de olhar pra fora do quartinho escuro não é recompensada, mas todo mundo toma nota do sorriso imprevisto – a depressão é fotogênica, não se esqueçam, mesmo com todas as camadas de privilégio que acumulo no corpo que ocupo. anos depois e o sinal está fechado pra nós. nem posso continuar o verso porque a juventude que me tinha eu perdi um pouco nesses anos de caos. sem ter onde segurar a mão (ah, se eu fosse herdeira, longe do aluguel, reserva financeira, coisa e tal) e sem dar pé (nunca fui de nadar no raso), me comprometi com mais gente, fiz mais listas de coisas pra fazer pra viabilizar o único negócio que me mantinha viva. no neoliberalismo, o dinheiro e a aparência de que você está viva é que te mantêm viva. nada foi suficiente. nenhum projeto manteve o cronograma e as placas tectônicas deram um chacoalhão na linha do tempo que virou corda bamba. nem a esperança equilibrista, que me jurou lealdade, manteve o pé. 

ironias à parte, é preciso escrever com quantas maiúsculas se fizer necessário: a arte – e a literatura, portanto, dentro desse guarda-chuva – são adendos importantes nos processos de luto, em quadros depressivos, mas não são suficientes – ainda que a arte não sirva à nada, nem a ninguém, outro post-it importante. o suporte sempre deve ser psicológico, médico. procurar cura pra depressão em oficinas de escrita, tão e somente, é como quebrar a perna e não ir pra emergência. com os professores e com quem ministra oficinas, não poderia ser diferente. há questões e questões e, infelizmente, nem todas podem ser elaboradas por meio do desabafo por escrito porque nem tudo acontece pela via da linguagem. assim como nem tudo o que escrevemos é literatura. do meu mísero quadradinho, é como se eu tivesse ficado lesionada por algum tempo, desde a finalização de um doutorado. o que é estranho, né?, com tanto investimento em ciência, nossos cientistas, pesquisadores, professores pifando. ali, em plena luz do dia. como pode? bando de preguiçoso a gente. mas você também não é artista, Julie? tanto incentivo para mamar nas. pois é. ah, mas tem a empresa. toda a minha biblioteca, único bem que possuo, pra quem conseguir manter uma empresa do meio cultural saudável em meio à finalização de um doutorado neste governo em processo. o obscurantismo é a nova rosa dos ventos e, uma pena, isso não começou ano passado. já faz mais tempo. encarei as consequências diretas disso em todas as esferas da minha vida que nem quadrada é. eu-artista, eu-pesquisadora, eu-professora, eu-afeto. foi antes do fim do mundo que, ó, adivinhem, também não reservou dias específicos pra privilegiar seu line-up. estava prontinha pra dar início aos projetos represados desde 2018 e, em vez disso, cheguei, sem nem pedir o ingresso, para o festival do apocalipse apresentando a falência múltipla dos órgãos terrestres em uma lenta e dolorosa sequência de teasers a todos que estiverem atentos. atentos e cada dia mais fracos. desculpe, Gal. no meu caso e também suspeito que não estou sozinha, desatenta também. com um transtorno de atenção que dificulta um pouco o fechamento das pontas soltas. desatenta, ansiosa e, quem dera, tão forte quanto se pensa. a lupa do instagram te alcança? sair do sofrimento psíquico individual com passagem só de ida para o pior cenário de sofrimento coletivo sequer imaginado em séculos me faz voltar algumas casas no jogo da vida – uma competição neoliberal de costumes ainda merece este nome? pergunta sincera, minha bateria social entrou num vórtex antissistema quando eu era adolescente. sobrou algum check-list de sucesso ou sobreviver vale por todos? dicas, inbox.

sigo ansiosa pelo dia em que o mundo finalmente postará seu textão de retorno das cinzas dizendo que ano passado morreu, mas que este ano não morre mais, que a ultradireita endossada pelos negacionistas seja só um retrato na parede e olhe lá. devo esperar sentada? estamos derretendo. a pulsão de vida cada vez mais difícil de medir, o batimento cardíaco cada vez menos audível, a terra gritando, por meio dos seis mil indígenas que seguem acampados contra o marco temporal. finjo que é só (mais um) cisco no olho quando vejo que o Jalapão foi vendido, tarefa impossível. o Tocantins guarda minha infância, foi lá que aprendi a andar. engolir o choro ou gritar nos mesmos decibéis que os ladrões que tomaram o Brasil? mas que chatice, agora vocês artistas e escritoras só falam de política. seria tão bom falar do odor das flores amarelas prestes a desabrochar nos ipês, tal qual um escritor com as contas pagas passando férias no campo, mas só sinto cheiro de fumaça mesmo. não é engajamento que vocês querem? toma arte engajada. sem gelo-seco, por favor. pelo menos até que um projeto político de morte não seja mais palavra de [des]ordem. devo me dar ao luxo de pegar as rédeas da minha vida, recém-recuperada, e ostentar o prato de comida na mesa, a possibilidade de ficar em casa e ter estado imune à COVID-19 todo esse tempo? um ano e meio em casa, sem ver a família, sempre de máscara, com medo, mas agora sã aos olhos da sociedade do desempenho. prontinha pra produzir de novo – próxima do que a Julie do passado fez, por sobrevivência, não por vocação – docência e literatura precisam se desfazer do chapéu do talento, mas isso é assunto pra outros tantos textos. 

dei sorte, estou viva. se você olhar bem de perto, até consegue enxergar uma mitocôndria feliz fazendo seu trabalho e uma aglomeração tímida de serotoninas. quando a gente traja luto por um tempo, descompassa, desajusta o cronômetro. maldita morte, ouço na única vez no mês em que desço à padaria. morreremos todos na contramão atrapalhando o sábado, o tráfego, o trânsito. fingir calma no peito enquanto um tufão devasta seu piso interno é tarefa que a literatura não ensina. é sabido que a felicidade também é resistência quando em meio à necropolítica. nem por isso, baixo a guarda e conto vitória. até porque já deu de narrativa heroica por sobre os corpos que nos dizem que há uma guerra maior em curso. um lembrete democrático segue ao alcance do olho: a sobrevivência individual não é maquiagem para o desfalque coletivo, o fim do mundo não tá pra brincadeira. estamos bebendo e soluçando como se fôssemos máquinas. o que eu queria mesmo era dançar e gargalhar como se fosse a próxima. não a última, penso, enchendo o peito pra gritar em maiúscula. sem retornos triunfais, por enquanto. 

AVISO: se você leu este texto e reconheceu sintomas ou percebeu que já passou por algo parecido, procure a ajuda profissional mais próxima de você.

Onde buscar ajuda

  • Centro de Valorização da Vida (CVV) – telefone 188.

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