(A)LIVE

– Oi, tá me ouvindo?

– Tô, sim, e você? (você tem criança, isso não se pergunta pra quem tem criança, tudo indo, aqui, tudo indo, aquela montanha-russa, um dia de cada vez, tô alcoólatra ou quando eu digo que vou parar não configura?, não sei nem que dia é hoje, tá Brasil, disse minha amiga Alice, hoje, sim, ontem prefiro nem contar, meu deus, mais uma sirene, já desisti do terceiro livro, dá pra acreditar que estamos discutindo se a Terra é redonda?, dizem que a nossa atenção dura o tempo de um comercial, cadê o copo de água que eu tinha deixado aqui, que nervoso, e se eu ficar com a cara congelada? tudo bem estranho aqui, essa vontade de cantar e vomitar ao mesmo tempo, previu o Nuno Ramos, isso é hora de encomenda chegar?, é a terceira sirene que passa por aqui só hoje de manhã, vou mudar de assunto, não vou falar sobre isso, mas ouvi que se você não fala sobre um assunto, a tua escolha de não falar diz mais do que se você de fato falasse a respeito, qual era o assunto mesmo?, gente, já disse que tô bem, mas o que manda é a pergunta automática. tá, vamos lá. ainda bem que hoje tem água.)

– Daquele jeito. E aí, tudo bem? (será que eu já perguntei se ela tá bem?, o que ela perguntou mesmo?, bem, tem a mudança, ontem entrou um morcego aqui, e tem o gato que agora deu pra ficar estressado e ontem mesmo eu vi no Instagram que tinha gente na praia e, que merda, vi uns amigos fingindo que não é com eles, e essa coisa de a tia talvez ter se contaminado na sala de espera do hospital e tem o emprego que eu sei que eu logo vou perder, uma merda ter que voltar pro interior, será que faz sentido viver aqui nessa cidade cara?, estamos vendendo tudo o que a gente tem em casa, até a máquina de lavar, ontem o menino do apartamento do lado foi levado, não vai sobrar ninguém desse jeito, a vizinha parecia estar escondendo o rosto a última vez que fui buscar umas encomendas na portaria, e não era com máscara, a gente tá sem ministro de uma pá de coisas, acho que não dá mais pra usar a palavra pá pras coisas, né?, a pá é o instrumento que leva o corpo pra terra, já imaginou ser coveiro?, já imaginou ser coveiro nesses tempos?, já imaginou esses tempos?, a vida não tá fazendo nenhum sentido, tudo escorrendo pela mão, o álcool tá acabando, a casa tá um caos, louça, que louça?, acho que não almocei ontem, almocei?, estamos em julho, julho?, como assim, o segundo semestre vai começar?, o primeiro nem terminou ainda, tô devendo coisas de janeiro, de fevereiro, de 2018, essa pandemia veio pra gente parar de colecionar pendências, como se fosse simples, os calendários de mesa se aposentaram, os alarmes tocam por educação e, quê?, oitenta mil mortos? pelo menos não tem ciclone previsto pr’essa semana.)

– Oi… tá me ouvindo?

– Sim, sim, tudo bem e você? – Por aqui também. Vamos falar de coisa leve hoje, né?

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima