Escrevo esta carta de um lugar privilegiado: a cidade de Curitiba no dia 12 de abril de 2020.
Daqui onde estou, além de avistar algumas araucárias, diviso o passado. A pandemia que matou, até este minuto, 110 mil pessoas.
Também avisto a Itália, terra dos meus antepassados Fadanelli e Madalosso, e a sua população tão católica não tendo direito a um velório, quanto mais a uma extrema-unção.
Avisto Nova Iorque, cidade onde morei e fui feliz em 1999, e suas ruas, antes coloridas pelos táxis, agora vazias, trafegadas apenas por ambulâncias e caminhões frigoríficos que, na falta de transporte mais adequado, recolhem os corpos.
Daqui ainda fito São Paulo, onde passei tantos anos da minha vida e dei luz à minha filha. Alguma coisa acontece no meu coração quando lembro o número de mortos por Covid previsto pelo governo do estado: em torno de 100 mil nos próximos meses.
Esses horizontes me levam a outros, que gostaria de dividir com vocês.
Há pouco mais de um mês, no dia 9 de março de 2020, dois estados americanos tinham quase o mesmo número de infectados que temos hoje em Curitiba: 114 na Califórnia, 142 em Nova Iorque.
Quase um mês depois, no dia 7 de abril de 2020, Nova Iorque tinha 131.239 casos confirmados e 4.758 mortes. A Califórnia, 15.221 casos confirmados e 351 mortes.
O que fez essa diferença? Alguns vão dizer que a Califórnia tem menor densidade populacional. É verdade. Por outro lado, tem quase o dobro de habitantes, o que deixa os dois estados quase na mesma situação. O que fez a diferença foi a seriedade com que cada governo e população encarou o isolamento. No dia 19 de março, a Califórnia decretou uma lei permitindo que os moradores só saíssem de casa para comprar comida ou medicamentos. O estado de Nova Iorque só decretou essa lei quatro dias depois, e de forma mais branda.
É uma diferença sutil, mas nada é sutil quando trata-se de um vírus altamente transmissível. Segundo um estudo publicado no dia 10 de abril de 2020 pela Science, a publicação científica mais respeitada do mundo, após ser expelido pela respiração de uma pessoa, o vírus pode permanecer vivo no ar por até quatro horas, fazendo com que mesmo uma caminhada no bairro ou uma ida a padaria seja um passeio na corda-bamba.
Conto isso porque, além das araucárias e desses tantos horizontes, avisto uma chance para Curitiba.
Uma oportunidade de escrever uma história um pouco menos trágica. E sem tanto sacrifício, sendo apenas o que o curitibano já é: curitibano. Atravessando imediatamente para o outro lado da rua ao encontrar um conhecido. Cumprimentando o sujeito com um aceno de sobrancelha. Ficando quietinho em casa, fingindo que nem está lá dentro caso alguém cometa o disparate de tocar a campainha. Indo ao supermercado na hora que tiver menos gente para não correr o risco de encontrar um conhecido, ou mesmo um desconhecido, ainda que esse desconhecido seja você, transfigurado por uma máscara no espelho da seção de laticínios.
Alguns poderão chamar você de antipático, mas tudo bem, para certos curitibanos isso nem é ofensa. É elogio.
Outros poderão chamar você de neurótico. Não dê bola, essas pessoas estão apenas mal informadas.
Hoje, a palavra para alguém que não vai à padaria à toa ou não deixa os filhos brincarem com os vizinhos é: cuidadoso.
Confesso que tem dias que também tenho vontade de sair pedalando por aí, visitar um dos meus irmãos, ver o restaurante da minha família abrir as portas, nem que seja uma frestinha, mas logo desinfeto esses desejos promíscuos com álcool setenta.
Aos preocupados com a economia, um lembrete: cada dia que botamos o nariz para fora, são dezenas de dias a mais que ficaremos trancados depois, tentando debelar o problema. Sem falar que o mercado é feito de pessoas, não de porcas e parafusos, deixar morrer parte da população não é apenas estúpido como desumano, algo que deveriam ter vergonha de sequer cogitar.
Quando disse que escrevia essa carta de um lugar privilegiado, pensava na ampulheta que temos nas mãos. Poucas capitais do mundo ainda conservam, como nós, alguns grãos de areia. Antes que todos caiam, vamos fazer valer a nossa chance?
Um abraço, bem de longe,
Giovana Madalosso