Sequer boa tarde

A funcionária chega à porta da Unidade de Saúde (US) e canta, como se fosse numa tômbola, em voz alta, um número. Este é o ritual desde que cheguei, há cerca de uma hora e meia.

Um rapaz se apresenta e entrega um pequeno pedaço de papel com o número impresso e recebe de maneira natural a pergunta: Qual é o seu nome?

Logan, responde o jovem de cerca de 30 anos.

É o carro da Renault? – pergunta a atendente.

Mesmo com máscara havia um sorrisinho, não de ironia, mas espontâneo pela surpresa do nome e, creio, por achá-lo engraçado.

Aquele sorriso, àquelas alturas, quase meio-dia, era um bom sinal. Afinal aquele já deveria ser o septuagésimo paciente do dia. A brincadeira demonstrava bom humor, coisa que não ocorria entre quem estava na fila esperando o atendimento.

Não sei se o jovem chegou a constatar o risinho. Se notou sequer teve tempo de reação. Imediatamente, após o comentário, ela solicitou um documento e quais eram suas queixas. Ouviu-o, mediu a temperatura, tomou nota e pediu para que aguardasse, seria chamado pelo nome.

A partir daí se tornou um paciente em dois sentidos: o de que está enfermo e o de que terá que ter paciência para esperar o momento do atendimento.

A espera não era precisamente numa fila, era sentar-se desconfortavelmente em frágeis cadeiras de plásticos – dizem que cadeiras melhores e mais confortáveis são roubadas – debaixo de uma barraca instalada na frente da US. A distância entre as cadeiras era insuficiente para evitar contágios.

O sol escaldante e o calor intenso fizeram com que algumas pessoas levassem cadeiras para debaixo de algumas árvores e arbustos ou mesmo, nestes locais, sentassem no chão.

Esse momento de espera já era o segundo, pois antes disso, ao chegar a US, aí sim, entrava numa fila indiana, para informar a razão da visita e se compatível com o que foi designado – atender pessoas que relatassem sinais e sintomas de infecção respiratória – àquela Unidade Saúde. Nem toda US atende as pessoas suspeitas de infecção respiratória, algumas só aplicam vacinas.

Se compatível recebia uma senha, que era o pequeno pedaço de papel contendo o número. Assim como Logan, que foi chamado pelo número, todas as demais pessoas o foram.

Debaixo da barraca e árvores e arbustos não havia espaço suficiente para abrigar a todos: havia mais gente que cadeiras e sombras. Para não aglomerar alguns de nós ficávamos de pé, sob o sol e o calor.

Ali, na espera, enfermos e acompanhantes éramos todos pacientes: muita gente e um só médico para atender. Havia gente com dificuldades respiratórias visíveis, febre, tosse e o sofrimento demonstrado nas feições, na postura física.

A fila não andava, espera levava no mínimo duas horas e algumas pessoas se punham nervosas, inclusive uma mulher que impacientemente caminhava de um lado para o outro e, pior, sem a máscara, o que nos impacientava.

Estava ali como acompanhante, e por essa condição entendi que não merecia uma cadeira, havia quem necessitava, portanto, a maior parte da espera fiquei de pé, debaixo do sol.

Observei que nesta US poderia ter sido elaborado um fluxo de atendimento diferente daquele que presenciei. Parte da US estava às moscas. Às moscas, bem entendido, é maneira de dizer, pois ali não observei se havia alguma.

Chegada o momento da consulta, foi-me consentido acompanhar o paciente.

A sala em que o atendimento foi efetuado estava separada, de maneira precária, por biombos. Nela havia seis pessoas.

Sai da US indignado, entristecido e preocupado: condições de trabalho ruins e ausência de privacidade para os pacientes. Para uma mulher ainda mais constrangedor.

O médico é obrigado – e é correto que assim seja – a tomar nota de todas as informações que o paciente e/ou o acompanhante relata. Se antigamente as anotações eram feitas em fichas, hoje são feitas em computadores.

Fica claro que a atenção do profissional está mais voltada para a máquina que ao paciente. Perguntava – com os olhos na tela do computador – sem olhar para quem estava à sua frente. Na minha concepção, perguntas insuficientes para conhecer o paciente e levantar alguma hipótese diagnóstica.

O exame físico foi realizado sobre uma maca e diante de todas as pessoas que estavam na sala. Terminado o exame (que por si só daria uma crônica), pediu para a criança descer, sentou-se à frente do computador e, sem nenhuma palavra, pôs-se a escrever. Vai até a impressora, recolhe o impresso, que é a receita, assina e entrega-a. Nada mais diz, sequer boa tarde.

Não me identifiquei como médico e perguntei: qual é a suspeita diagnóstica?

Uma virose, é a breve resposta, e nada mais.

Foi até uma mesa recolheu um documento preso com um clip a uma senha numérica. Retira o clip, pega o papel com a senha e joga-o no lixo. Detalhe, a lixeira era de pedal e estava quebrada, abriu-a com a mão, e antes mesmo de sairmos foi até a porta e chamou o próximo paciente pelo nome. Não era o Logan.

Não o vi, em nenhum momento, lavar as mãos.

Fica claro que a atenção do profissional está mais voltada para a máquina que ao paciente.

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