Prô querido amigo

O Valêncio foi morar na lua e foi sem terno e gravata. Não reparei – na última visita que fiz a ele – se estava descalço, de sapato velho ou novo.

Não tenho o hábito de ficar – quando em aeroporto – navegando na internet, mas como tinha que permanecer, por mais de quatro horas à espera do voo, resolvi dividir o tempo entre a leitura de um livro e as ondas. No navegar descobri que Valêncio Xavier tinha acabado de nos deixar.

Sábado, dia seguinte à sua morte, fui despedir-me dele. Já em casa e sem nenhuma decisão racional ou pretensão fui à estante procurar os livros escritos pelo Valêncio que tinha. Cinco e, coisa rara, tinha lido todos.

Ao folheá-los constatei que em dois deles há dedicatórias. No “a propósito de figurinhas” está lá:

Prô querido amigo B. C. com todo o carinho do Valencio Xavier, 86.

Li e reli a dedicatória e comecei a folhear o livro. Isso, naquele momento, possibilitou-me a suspeita de que o Valêncio tinha ido morar na lua.

Conheci-o na metade da década de 1970, quando, ainda estudante, comecei timidamente a frequentar a cinemateca Guido Viaro, tempo em que havia a carteirinha de sócio.

Naquela época não precisava ser de esquerda para ser excluído, perseguido e até a ser preso. Como aqui não é uma biografia não sei se isto aconteceu com ele. Bastava pensar.

Valêncio era um pensador, debatedor e sempre polêmico. Com suas ideias e comportamento atraia muitos de nós, principalmente os iniciantes. Eu era um iniciante e, no quesito cinema, ignorante. Ele foi um dos que me ajudou a ver cinema como arte, cultura e instrumento de reflexão.

Todos que conviveram com o Valêncio têm histórias para contar e creio que a melhor homenagem que posso fazer a ele – no próximo dia 5 completam-se 13 anos de sua mudança – é contar um pouco do nosso convívio.

Aproveito e lamento que tenha sido pouco, pois ao entrar para a vida pública acabei me afastando de muitos amigos – mais por excesso de trabalho do que por polêmicas políticas.

Quando o Homero Teixeira de Carvalho, autor, entre outros, do curta Catadores de papel, se casou, apesar da sua contrariedade, não por casar, mas pela exigência de usar roupas que o evento exigia, fez como todos os noivos: comprou roupa e sapato novo. Na mesma semana que se casou o Homero vendeu os sapatos para o Valêncio.

Dias depois de adquirir os sapatos o Valêncio nos disse que também tinha comprado um terno: estava preocupado, poderia morrer e não tinha roupa adequada para ser enterrado. Isso no final da década de 1970.

Quando me formei médico, 1976, ele e sua filha Ana apareceram em casa com um pacote de presente: era um estetoscópio de plástico, destes presenteados para crianças brincarem de médico.

Não sei onde e quando perdi tão valioso presente. É uma das coisas que lamento não ter comigo até hoje.

Neste convívio cheguei inclusive a ser um figurante no Caro Signore Feline (Carta a Feline), 1979, dirigido pelo Valêncio, que venceu o prêmio de melhor filme de ficção na 9ª Jornada Brasileira de Curtas-Metragens. Figurei – melhor dizer – minhas pernas figuraram no forró. Ele gravou pares dançando à pouca luz e com a câmera focando as pernas. Tenho certeza de que as minhas estão lá.

O Valêncio foi morar na lua e foi sem terno e gravata. Não reparei – na última visita que fiz a ele – se estava descalço, de sapato velho ou novo.

A suspeita que foi morar na lua está no seu a propósito de figurinhas, nº 127 – NA LUA.

Mais para frente pensava
Tudo ia melhorar. Mais que nada!
Pensava em sentar na perna da Lua
Balançando as pernas no ar
Danou-se! O redondo da Lua é igual ao de cá
Não tem onde se agarrar
Quem quiser vive pendurado, lá também viverá
Seja lá onde for
O que lá estará é igual ao que cá está.

Este é o meu até já para o Valêncio Xavier, que foi para a lua e lá está pendurado.

P.S. Está crônica contém algumas anotações que fiz no mês de dezembro de 2008, logo após a mudança de Valêncio Xavier Niculitcheff para a lua.

Crônicas têm P.S.?

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