Inexistentes abraços

Retomo o tema que originou a ocupação deste espaço: escrever crônicas sobre dedicatórias, melhor, tentar revirar o que fica escondido atrás de dedicatórias.

Cumpri a promessa por pouco mais de um ano, mas me “perdi”. Perder-se, ao caminhar, nem sempre é involuntário. Há os que se perdem voluntariamente, e este foi o meu caso.

Poucos meses depois de começar a escrever sobre dedicatórias a pandemia da covid-19 mandou-nos um duro recado: recolham-se. Obedeci. Sem poder sair cacei nas prateleiras, aqui de casa, dedicatórias entre livros e LPs.

Pelo entusiasmo inicial, próprio para a maioria dos principiantes, consegui, por esse período, desempenhar a tarefa, imagino, de maneira satisfatória. Satisfatória? Será?

O isolamento prolongou-se, as dedicatórias escassearam e o tema se tornou monótono e acabei por entrar num processo de repetição de conteúdo ou de frases inteiras.

Humm, isto não estava bem.

Com a impossibilidade de sair às ruas e frequentar sebos em busca de “novos” livros com dedicatórias começou a faltar matéria prima, assim voluntariamente desviei do caminho.

Dentro de casa, pela janela, passei a observar o horizonte de prédios e nuvens, a rua em frente ao prédio, os telhados, gritos, comportamentos de animais e pessoas. Até o comportamento de um casal de urubus e seu filhote, no telhado aqui em frente, observei por três dias.

Dei mais atenção ao triste momento que passávamos. Até hoje não ei se adoeci ou não: há que afirme que sim, eu grito não.

Confesso que para me manter dentro do tema ‘dedicatórias’ fui buscar “inspiração” até no Google. Abri-o e digitei “dedicatórias” e entre milhares de coisas apareceu um livro, A Dedicatória, Botho Strauss.

É possível buscar inspiração no Google?  A mim não me inspirou.

O Google indicou a existência do livro e o local onde comprá-lo. Como era buscar “inspiração” e não a compra de livros não o comprei. Havia somente descrições sobre as condições de cada livro com o objetivo de fixar o preço de venda: livro em “bom estado, sem grifos, pintado a lápis, folha de rosto amarelecida, brochura. Coisas assim.

A proposta inicial de escrever sobre dedicatórias é que dão sabor (ou dissabor) a quem as recebe, que poderá orgulhosamente dizer: foi feita para mim.

Há dedicatórias que são o senso comum ou refletem a preguiça ou a falta de criatividade de quem as escreve, mas vamos e venhamos: é difícil criar uma frase para cada um dos livros autografados numa sessão de lançamento. Imagine cem livros com cem escritas diferentes.

Na ausência de criatividade, por cansaço ou por preguiça pode o autor/a simplesmente tascar um Para o José, ou Para a Maria, seguido de um abraço e a rubrica. Este abraço não existiu. Com certeza quem está na fila atrás ganhará o mesmo abraço. O que restará depois de tantos inexistentes abraços?

Há também aquela dedicatória que é composta de “hieróglifos”: não se consegue ler o que está escrito e a rubrica ou assinatura não identifica se é de quem escreveu o livro. Há desses casos aqui em casa.

Há pessoas caçadoras de autógrafos não importa se de atleta, artista, escritor/a, o importante é a dedicatória. O livro, nem sempre será lido. O importante é o autógrafo, não o livro. Este passa a ser, na prateleira, um mero objeto de exposição/decoração. Com o tempo muitos destes objetos vão parar nos sebos.

Entre tantas dedicatórias há ditadas pelo coração e cheias de esperança de um retorno. São aquelas escritas pelo próprio autor ou por quem o presenteou e transmitem a expectativa de encontros ou reencontros futuros. Como isto não corre restou-lhe o destino de se tornar um objeto a ser vendido.

Estas elucubrações são simplesmente para dizer que as futuras cônicas continuarão por sendas tocadas pelo vento.

E se ele soprar contra?

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