Desabrigados de afetos

Estava dentro do supermercado – não citarei o nome para não fazer publicidade, ou minha presença sequer serve para isto? – quando, no momento de sair, começou a chover chuva forte. Intensa. Com vento.

Sem celular, sem internet, sem nada para ocupar o tempo, vou até a livraria abrigada dentro do prédio e compro um Le Monde diplomatique e o livro Serei sempre o teu abrigo, de Valter Hugo Mãe.

Com livro – pequeno no formato, no número de páginas e pouco texto – e jornal nas mãos sentei-me num café de onde pudesse ver a rua e não me descuidar das pessoas do local. Estes cuidados tinham objetivos: observar a chuva e assim que parasse poderia ir para a casa, ler com tranquilidade e me isolar, afinal o coronavírus ainda está presente.

Sentei-me para ler e admirar o livro.

Em Serei sempre o teu abrigo a sensibilidade do autor desvela delicadamente a figura de seus avós, o abrigo que um é para o outro e ambos para ele: As pessoas abrigam-se umas nas outras. Mesmo ausentes, nossos abrigos existem. Estamos debaixo da memória.

É um livro simples, mas de beleza e singeleza surpreendentes. Capa e contracapa pretas, lombada azul. Todo o livro ilustrado com finos traços: corpos leves, em espaços vazios, flutuando, porém abrigados e cheios de amor. Apesar da leveza das ilustrações e dos textos, meu corpo, minha alma, não puderam sair do chão. A atual realidade prende-nos: é como estar algemado e dentro de uma cela.

A distância das pessoas e a beleza do livro não foram suficientes para a tranquilidade da leitura, ou mesmo para observar as robustas gotas de chuva que se chocavam, empurradas pelo vento, contra os vidros, a calçada e os carros. Havia muitas vozes ao redor, e pior, perfeitamente audíveis e de pouca ou nenhuma importância para mim e imagino, para as próprias pessoas que as emitiam.

Chegava mais gente, provavelmente nas mesmas condições que eu: sem poder ir para casa. Fiz a opção de ler.

As falas devoravam meu sossego e meus possíveis minutos de leitura. Mesmo com a acuidade auditiva diminuída e olhos colados no livro ou no jornal, descolava-me da leitura e de repente ainda ouvia:

_ Que fofo!

_ Que lindo!

Imaginei que falavam de uma criança – ledo engano –, desviei os olhos do que lia e então vi que todo elogio era para um cachorro. Cachorro ou cão?

Não sei. Mario Quintana, no olhar e voz de poeta, já os diferenciou.

_ Que pelo brilhante!

_ Ele é bravo?

_ Tenho um da mesma raça.

A vítima dos comentários continuava passivamente deitado e a dona agradecia, um a um os lisonjeios, como se fosse para ela.

Às vezes o assunto avançava sobre cuidados com a fera: rações, banhos, tosas, passeios, necessidades, etc..

Tentava continuar a leitura do jornal, mas a todo instante era interrompida. Chegavam outras pessoas e novos e repetitivos comentários. Só uma vez fugiu do cachorro: uma mulher recém-chegada, comenta sobre o cachorro e seguida se dirige à dona do animal e acrescenta:

_ Não repare no meu cabelo, é que acabei de chegar da praia.

Tinha necessidade de dizer que estava na praia e eu que não tinha reparado olhei para o a cabelo, sem sinceramente saber se poderia ficar melhor do que estava.

Além de ler o Serei sempre o teu abrigo, li três artigos do Le Monde e desisti. Mesmo com a continuidade da chuva, só que menos intensa, saí para ir para casa. Melhor ficar molhado que escutando papo sobre cachorros.

Em casa, já com o sol se pondo, um miúdo pássaro – imagino, pois não consigo enxerga-lo, apesar de ter ido até a janela para visualizado – canta num piado fino e rápido o fim do dia.

Sob o canto do miúdo penso na frase: As pessoas abrigam-se umas nas outras. Mesmo ausentes, nossos abrigos existem. Estamos debaixo da memória.

Existem muitas pessoas, imagino, que têm como abrigo e para abrigar afetos somente cachorros. Triste, não?

Sobre o/a autor/a

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