Com carinho

Para Carlos Paraná (in memoriam)

Nasci e cresci entre – floresta – árvores, troncos queimados, queimadas, e plantações. Vi e aprendi a – semear – plantar arroz, feijão, milho, quiabo, berinjela, abóbora, batata doce…

Também aprendi a colher – a comida de cada dia – bater [o arroz, o feijão…], ou seja, preparar e secar, quando necessário, os grãos e armazenar.

Aprendi a fazer horta, plantar flores, árvores frutíferas, pés de café, colher os frutos e, mesmo sem geladeira, como preservá-los.

Aprendi a cuidar das plantas e das plantações para não morrerem de “pragas”, sede e a adubá-las – na época com adubos orgânicos – para ficarem bonitas e produzirem.

Cresci aprendendo os fazeres e afazeres da roça e da casa.

Cresci e trabalhei entre cafezais e do pé de café trouxe alegrias e tristezas. A alegria das boas colheitas e a tristeza das geadas e do perder tudo, inclusive a esperança.

Há algo que sinto e já conversei com outras pessoas que com café e cafezais trabalharam que – apesar do trabalho penoso – as memórias que restam predominantemente são as boas. As ruins são, em geral, demonstradas em lamentos. E, ambas, às vezes em canções de café e amor.

O cafezal se acaba e a memória fica contagiada de recordações positivas, como o cafezal florido com toda sua brancura, o perfume das flores e as abelhas colhendo mel e polinizando. Fica a imagem do café amadurecendo e a ousadia de criança de colher o fruto vermelho e colocar na boca só para chupar o doce suco e desprezar o grão.

Se descoberto: a bronca por estarem “perdendo” alguns frutos que gerariam algum recurso financeiro necessário e importante para o pequeno agricultor.

Fica também a recordação do riso solto e o rosto alegre de quem faz uma boa colheita.

Na roça, sempre há o que fazer e o que falar seja sobre o café, arroz, feijão ou…. Sempre, mesmo que repetidos, há diálogos:

“Será que vai chover?” – A pergunta é feita na maioria das vezes só para conversar.

A resposta era sempre a mesma: “acho que sim”, “acho que não”, “talvez” “tomará, está precisando”.

Sobre o café que era o produto comercializado, as expectativas eram sempre maiores:

“Se tudo correr bem, não gear, não faltar chuva e se Deus quiser ano que vem vai dar boa colheita.”

“Deus há de querer.”

E um dia – após uma noite fria, parece que Deus não quis a boa colheita – amanheceu com “geada negra”, que matou todos os cafezais do norte do Paraná e, como resultado, adoeceu e matou gente de tristeza e de fome. Matou muitas esperanças e iniciou um processo migratório rumo às cidades.

Migrei – para estudar – antes da geada. Minha família migrou depois da geada.

Migrei com 18 para 19 anos de idade.

Carlos Paraná migrou com 19 anos. Saiu de Ribeirão Claro (PR), também terra – na época – de muitos cafezais e foi para o Rio de Janeiro.

Carlos Paraná saiu para ser cantor, compositor e músico. Eu para ser médico.

Tempos depois mudou-se para São Paulo onde abriu um barzinho, que foi transformado na Boate Jogral: ponto de encontro de muitos músicos e intelectuais.

Morreu – de cirrose causada por uma hepatite – no dia 3 de dezembro de 1970. Sequer chegou a ouvir o disco A Música de Carlos Paraná, lançado em dezembro daquele ano.

Na capa deste disco Marcus Pereira escreve:

Carlos, meu velho,

                            terminamos, afinal, o seu disco. Desculpe retomar assim o nosso diálogo, mas não fosse a sua teimosia e este disco poderia ter sido feito antes. Mas você, com aquela história de deixa prá lá, ao longo de todos estes anos, vai ouvi-lo agora não sei em que circunstâncias. (…). Todos nós, ainda embriagados de tristeza, talvez um pouco sobressaltados ainda, aquela descrença burra iludindo a gente.

Tenho dois discos – ambos comprados em sebo – “iguais” de Carlos Paraná. As músicas são as mesmas. Um lançado, em 1971, pela Jogral, gravadora criada por ele e um segundo lançado pela Som Livre, em 1973.

Mantenho-os por simples razão: a Jogral tem história na vida de Carlos Paraná e na produção musical do Brasil; eo segundo tem uma dedicatória:

Para

         Minha

Preta

Com Carinho

19-7-75

C.

Gosto de todas as músicas do disco, mas uma delas retém-me e retenho-a como saudade e feita – provavelmente – também por estar presente na memória de Carlos Paraná: “Cafezal em Flor”.

Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal / Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal / Ai menina, meu amor, minha flor do cafezal / Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal.

Era florada, lindo véu de branca renda / Se estendeu sobre a fazenda, igual a um manto nupcial / E de mãos dadas fomos juntos pela estrada / Toda branca e perfumada, pela flor do cafezal.

(…).

Passa-se a noite vem o sol ardente bruto / Morre a flor e nasce o fruto no lugar de cada flor / Passa-se o tempo em que a vida é todo encanto / Morre o amor e nasce o pranto, fruto amargo de uma dor.

Não sei e tampouco vou buscar razões para explicar por que Preta desfez-se de “objeto” tão valoroso.

Se na roça os diálogos eram repetidos e sempre cheios de esperanças, hoje, quando existem, são diminutos, via WhatsApp, quando não monólogo impositivo.

No WhatsApp ninguém pergunta se vai chover: o Google informa.

Carlos Paraná morreu de cirrose pós uma hepatite. Hoje morre-se de hepatite medicamentosa causada pela cloroquina, terapêutica imposta – num monólogo impositivo contra a ciência – pelo inominável presidente e aceitos por – pasmem – médicos e médicas.


Para ir além

A minha Malena
A crônica não mata

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