Entre policiais e temperos

Todos os dias a maioria dos policiais do Departamento de Narcotráfico almoçava ali mesmo, no departamento. Comida boa, feita pela Sirlei, cozinheira de mão cheia e muito querida por todos. Carinhosamente foi apelidada de “Si”. Mas naquele fatídico dia, a Si não foi trabalhar.

Dia 23 de março, de 1998, o dia em que deu a louca na polícia. Neste dia estava tudo normal, tudo mesmo. Droga entrando, presos entrando, mas ao meio-dia, absolutamente tudo parava e a única coisa que entrava, era a comida da Sirlei, que entrava na barriga. Na hora do almoço, a delegacia se tornava quase que um mosteiro, até porque muitos dali julgavam que a comida da Si era realmente sagrada. O único barulho que se ouvia era da mastigação e deglutição.

Durante o almoço, como sempre, o refeitório estava cheio, mas algo fez o delegado romper com o silêncio, havia algo de diferente naquela comida e ele queria saber o que era. Aí ele pediu ao Arildo, que estava ao seu lado, para ir chamar a Sirlei.

Arildo, detetive investigador também de mão cheia, e este era seu apelido, Mão Cheia, não pelo fato de ele ser um  bom investigador, mas porque estava um tanto acima do peso e suas mãos eram gordinhas. Fora isso, tinha grandes costeletas, pois era fã do Elvis.

– Arildo, sabe que tempero a Si usou hoje? Tá diferente.

– Tá ruim, chefe?

– Não, tá bom, só tá diferente e tô me sentindo esquisito.

– Como assim? Esquisito?

– É, não sei dizer, tô mais leve, parece que tô sentindo o gosto das cores.

– Quê?

– Traga a Si aqui, já!

O Arildo voltou, mas com outra mulher, uma tal de Dona Maria, que estava substituindo a Sirlei, pois esta estava doente.

Dona Maria, uma senhora simpática, baixinha e rechonchuda, com o cabelo branquinho e bochechas rosadas, tipo aquelas vovós de desenho animado. Uma doçura de pessoa, mas também muito ingênua, meio surda e com uma miopia tremenda, que fazia ela espremer os olhos ao falar.

– Chefe, esta é a Dona Maria, que está substituindo a Sirlei, pois está de atestado hoje.

– Agora entendi a mudança no cardápio.

– Oi? Quem é o larápio?

– Ninguém Dona Maria, eu disse cardápio! E falando nisso, que tempero a senhora usou?

– Ué, usei os temperos que tinham na despensa.

– A senhora quer dizer, na cozinha, os temperos que ficam em cima da prateleira.

– Não, não, usei os da despensa, mesmo. É que eu não estava encontrando, aí fui procurar e encontrei a despensa e estava tudo lá, gostou da comida?

– Gostei, mas Dona Maria, não temos despensa aqui, onde é o lugar que a senhora foi?

Dona Maria, que havia perdido seu óculos e sem eles era praticamente cega, levou eles até a tal despesa.

– Ó, como eu disse, é aqui onde a placa diz “Salsa e Ingredientes”

O delegado pôs as mãos na cabeça, como se fosse tentar arrancar os parcos cabelos da sua cabeça calva.

– Dona Maria, Esta é a “Sala de Entorpecentes”! não “Salsa e Ingredientes”!!! O que a Senhora usou dali de dentro? E como a senhora conseguiu entrar ali???

– Isso eu sei, chefe! Quebramos a tranca já faz dois anos, mas o conserto ainda está na fase de orçamento. O pessoal que está cuidando deste orçamento é muito incompetente.

– Mas o responsável pelo setor de orçamentos é você, Arildo!

– Ah, verdade.

– Dona Maria, o que é que exatamente a senhora usou destes ingredientes?

Dona Maria foi dizendo e apontado para os “condimentos”.

– Usei estas folhas de louro e orégano no feijão, um pouco deste cominho na carne, este sal coloquei por tudo e usei um pouco de fermento para o bolo que enfeitei com estes confetes coloridos.  Ah, e para os vegetarianos fiz um shitake com estes cogumelos lindos! Nuca tinha visto cogumelos tão coloridos assim! Gostaram da comida?

Como o leitor já deve ter percebido, na verdade as folhas de louro e o orégano eram maconha, o cominho era haxixe, o sal era cocaína, o fermento era heroína, os confetes eram LSD e os cogumelos eram alucinógenos.

– Meu Deus, Dona Maria! digo…donas Marias…

O delegado já estava começando a ficar sob o efeito das drogas.

– Arildo… Arildo… Arildo!

O Arildo estava disperso, fazendo a contabilidade dos seus próprios dedos.

– Doze! Tenho doze dedos nas mãos!

– Arildo, rápido, corre no refeitório e avisa todo mundo para não comer mais nada! Arildo!!! Puta que pariu, para de contar seus dedos, cacete! Corre! Vá avisar todo mundo.

Mas o Arildo era lento e demorou mais ainda, pois teve que parar para mostrar seus doze dedos para o Elvis Presley, que encontrou no corredor. Quando ele chegou, já era tarde demais, todo mundo estava doidão sob o efeito das drogas.

O delegado chegou correndo e viu todo o seu contingente fazendo loucuras pela delegacia. Os mais exaltados eram os vegetarianos.

– Arildo, me ajuda, estou tendo uma alucinação. Estou vendo o inspetor Silveira usando um chapéu feito com jornal, vestindo apenas uma fralda geriátrica, montado numa cabra, em cima da mesa!!!

– Calma chefe, também estou vendo! É ele e está assim mesmo! Que legal!

– Como assim que legal??? E onde é que ele encontrou essa coisa branca aí?

– Ué chefe, na sala de provas! Era de uma idosa que tentou esconder drogas ali dentro e passar pela alfândega.

– Não tô falando da fralda, tô falando da cabrita!

– Eu também!

– O quê???

– Esta é a Preciosa, é testemunha da morte do Raul…

– Seixas? (Nesta altura ele já estava acreditando em tudo)

– Capaz! Ficou doidão, chefe? Testemunha do assassinato do bode chamado Raul. O Raul Seixas morreu de diabetes. Falando em ídolo do rock, sabia que o Elvis realmente não morreu? Troquei uma ideia com ele hoje.

– Mas como subiram na mesa?

– É que a Preciosa é uma cabra da montanha, e subir no lugar mais alto possível do local, é uma característica deste tipo de cabra. A mesa foi fácil para ela. Ela já está olhando para o arquivo cinza, o maior daqui.

– Como você sabe de tanta coisa assim?

– Depois do almoço fiquei com a mente estranhamente muito mais acelerada. Deve ser o glúten.

Neste momento, na frente deles passa um grupo de vegetarianos pelados, algemados uns aos outros, cantando uma canção indígena que cuja letra a Agente Fernanda havia recebido de um espírito da natureza, vindo de uma samambaia que ficava no “fumódromo”.

O delegado via tudo e cada vez ficava mais apavorado.

– Nossa! Tá vendo isso, chefe? A Fernanda?

– Tô sim! É real?

– Acho que é silicone! Gostosa, né?

– E isso é hora para este tipo de observação, Arildo??? Arildo?

O Detetive Arildo já não estava ali, pois já havia tirado a roupa e se integrado ao grupo dos peladões, que agora faziam um ritual com a samambaia, que elegeram como sua deusa.

O delegado teve que mudar o foco e ir conter o Inspetor Rocha, que havia entrado em luta corporal com uma máquina de picar papel.

No caminho foi parado pela Detetive Valdês.

– Chefe, preciso da doze! Onde está a doze? Não vou conseguir abater este maldito dragão sem a doze!

– Calma, você não vai usar a doze para matar nada!

– Boa Chefe! Verdade! Vou usar uma granada!

– Não, espera, é tudo uma ilusão, a comida estava com…

Mas antes que terminasse, foi interrompido por um panda, que educadamente perguntou onde era o banheiro. Ficaram se olhando por alguns segundos. O panda saiu.

O delegado meio que voltou a si, ao ouvir tiros e uma gritaria. Era o Rocha, que havia baleado a picadora de papel e alegava legítima defesa. Estava sendo preso por um colega.

Neste momento o Silveira proclamou a independência da república e se autointitulou Imperador do Brasil.

Com o Grito da Independência do Silveira, todo mundo comemorou, menos os vegetarianos, que estavam em transe ao redor da samambaia.

– Fonseca! Ô Fonseca! Larga a Dona Maria! (gritava o delegado)

O Fonseca, que era gay, estava beijando na boca a Dona Maria, ou a Dona Maria é que estava beijando Fonseca. Naquela altura não dava mais para saber de nada.

Aí uma detenta começou a brigar com o estagiário Artur, que estava bebendo o leite direto das tetas da cabra.

–  Ei, você, para com isso. Ela te permitiu pegar na teta? Você não pode sair assim, pegando nas tetas dos outros sem permissão!

E saíram no tapa.

Antes de separar mais essa briga, o delegado ouviu o cão farejador que não parava de latir, nunca tinha farejado tanta gente drogada junta. E isso foi a última coisa que o delegado lembrava de ter acontecido.

No dia seguinte, por sorte, estavam todos bem e ninguém tinha morrido. Fora a cara depressiva da maioria, e a internação do estagiário Artur, pois era intolerante à lactose. O Fonseca não saia do banheiro, insistentemente escovando os dentes e lavando a boca. Assim como o Pereira, que sem parar lavava a bunda e ninguém sabia o motivo.

O delegado entrou em sua sala, fechou a porta, sentou em cima da escrivaninha e através das divisórias com vidros grandes, ficou contemplando todo o departamento trabalhando em plena normalidade. Droga entrando, presos entrando, a Si  voltou, ufa, tá tudo normal.

Depois de mais um tempo olhando fixo para o escritório todo, perguntou para si mesmo.

– Puta merda, será que é silicone, mesmo?

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