Como chamar uma pessoa com deficiência

Sandoval, um senhor com 56 anos de idade, magro, calvo, com 1,80m de altura, que enganava, parecia mais baixo, pois ficava a maior parte do tempo sentado por ser tetraplégico. Também era zangado. Pela fisionomia e pelo temperamento, o Sandoval parecia com o Gargamel dos Smurfs, só que em uma cadeira de rodas.

Ele não era assim à toa, não é nada fácil ter deficiência em um país onde a pessoa com deficiência é desrespeitada a todo instante, seja em uma calçada mal cuidada pela prefeitura, ou quando alguém usa uma vaga exclusiva, mesmo não tendo problema algum. E o Sandoval já estava de saco cheio com tudo isso e saía de casa já sabendo que iria se irritar com algo do tipo.

Naquela manhã, ele estava tranquilo, com pouca dor e pouco espasmo, havia conseguido dormir bem, acordou com disposição e foi ao supermercado.

Tentou estacionar em uma das vagas para pessoas com deficiência, como  não tinha nenhuma, resolveu tentar usar uma vaga comum. Precisou da ajuda de quatro estranhos para sair do carro, pois a vaga comum é estreita demais e não cabe a cadeira entre os carros, coisa que na vaga exclusiva não aconteceria, pois é mais larga justamente para isso. Não precisaria da ajuda de ninguém, assim como um “andante” faz em sua vaga comum, podendo ir e vir sem transtornos.

Depois de ter sido arrancado do carro e jogado em sua cadeira de rodas, tipo um saco de batatas, ele viu um indivíduo lanchando no carro, no banco do motorista, estacionado na vaga exclusiva para pessoas com deficiência. E como de praxe, ficou puto!

“Ô amigão, não viu a placa indicando o tipo de vaga? O que você está fazendo aí? Cai fora!”

“Calma, tô só terminando este xis salada aqui e o senhor já vai poder usar a vaga para aleijados.”

Aí o Sandoval ficou bem mais puto.

“Aleijado? Aleijado? É sério isso? Que intimidade você tem para me chamar assim? Já leu no dicionário o que significa aleijado?”

“Não.”

“Então sai desta merda de vaga e vá ler a merda do dicionário antes que eu chame a polícia para te tirar daí!”

“Nossa, o senhor é nervosinho hein! Calma aí tio, que além de ter necessidade especial, vai ter um enfarto.”

“Que necessidade especial o que cara! Uma pessoa que chega em casa do trabalho com dor de barriga, correndo para ir no banheiro, e se cagando vai abrir a porta, mas percebe que deixou a chave de casa no escritório, isso sim é uma pessoa com necessidade especial!”

“Foi mal aí tio!”

“Não sou teu tio! Tô pegando tua tia pra me chamar de tio?”

“Nossa, desculpe, é que não sei bem como chamar os inválidos.”

“Inválidos?! Inválidos são teus órgãos genitais!”

“Ok, ok, paralítico? Inútil?”

“Doente!”

“Ah, é doente? Não sabia…”

“Você é um doente! Olha só o que você tá falando!”

“Não precisa me ofender, você tem sorte, pois eu até te bateria se o senhor não fosse um…”

“Um o quê? Desce aqui! Desce aqui! Fala na minha cara! Pode vir!”

Aí o rapaz também começou a gritar.

“Jorge!!! Jorge!!!”

“Você não tem vergonha não? Sou um cadeirante e mesmo assim você vai pedir ajuda para brigar? Pode chamar teu amigo, que venham os dois!!!”

“Tiozão, não quero brigar não, só quero conversar. Jorgeeee!!!!”

Aí o Jorge veio, abriu a porta do carro, abriu o porta malas e tirou uma cadeira de rodas. Ajudou o rapaz a passar do carro para a cadeira. O rapaz era paraplégico, só ainda não estava habituado com as definições.

Ficaram frente a frente. O Sandoval não sabia o que dizer. Ficaram se olhando em silêncio por um tempo, até que o guarda chegou para ver o motivo da gritaria.

“O que está acontecendo aqui senhores? Por que estão gritando?”

Com o Sandoval ainda mudo, o outro cadeirante falou:

“Eu não tô gritando, quem tá gritando é este tiozão careca.”

Aí o Sandoval perdeu a cabeça de vez, partiu para cima do rapaz, com cadeira e tudo. Podiam lhe chamar de qualquer coisa, mas de careca, jamais!

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