O muro: uga-uga, gugu-dadá

Não é um pré-requisito para entender a crônica de hoje, mas comecei a falar do muro aqui e continuei aqui, caso você queira me acompanhar desde o início.

Eu não tive a sorte de ter presenciado o início da vida humana. Digo “sorte” se eu pudesse estar lá transportado e protegido por uma máquina do tempo. Caso contrário, eu começaria dizendo: eu tive a sorte de não ter tido esse azar, a vida era mais dura naquela época.

Volta e meia penso na humanidade pré-histórica assustada com trovões e relâmpagos, abrigando-se nas cavernas – atavismo para a proteção uterina –, testando hipóteses sobre como conseguir alimento, engatinhando na direção do que só muito mais tarde poderemos chamar de civilização – essa mesma que nos acolhe, diverte, oprime e mata, tudo ao mesmo tempo.

Mulheres e homens primitivos, sapiens, eram atravessados pelo real e buscaram formas de nomeá-lo para apreendê-lo. Evoluíram sem manual de instrução, a voz da cultura ainda um sussurro mal esboçado. Por isso, entre outras coisas, reproduziram o mundo como realidade e desejo na forma de pinturas no fundo de uma caverna. Também criarão mais tarde mitos explicativos que darão alguma inteligibilidade aos enigmas – sob pena de serem devorados por eles. O mundo como esfinge.

Agora, veja: a infância da humanidade vem decalcada na infância do humano. Um bebê, embora nasça no seio de uma cultura, pode – até certo ponto – ser considerado pré-histórico, ou seja, é alguém anterior a uma história que ele só começará a tecer depois de nascido, junto a suas circunstâncias. Sim, antes de falar, a criança é falada, isto é, já tem uma história narrada para ela. Porém, como corrida de bastão, ela pega essa história a priori, que não foi ela que percorreu, e vai enfim traçar percurso próprio.

O susto diante de trovões e relâmpagos, o medo do escuro, a saudade do útero, o pavor frente à largueza do mundo, o teste de hipóteses para se alimentar, o engatinhar rumo a uma postura de ser civilizado – inscrito numa comunidade de iguais diversos –, a busca por simbolizar esse real nu de que falei na coluna anterior, todas essas aproximações me autorizam a pensar especularmente o início da vida do sujeito com o início da nossa vida como espécie. As brincadeiras infantis e as histórias inventadas, por exemplo, antecipam situações assim como bisões flechados desenhados em fundos de cavernas eram a antecipação de uma demanda.

Então brincar, contar histórias, pintar e rabiscar são jeitos de esculpir um corpo assimilável para o real escapadiço. Da garatuja ao tratado filosófico, da pichação à pintura institucionalizada do museu, queremos dar significação às coisas que nos atingem, mas que ainda não entendemos.

É aí que retorno ao meu muro: escrever é um modo de se inscrever na cultura, não?

Antes, incluo um passeio de bicicleta que faço de vez em quando. Passo pelo muro, avanço para o Parque São Lourenço, depois Bosque do Papa e desemboco na ciclovia do Centro Cívico. Instalaram ali painéis coletores de energia, ou algo parecido. O asfalto é de um vermelho muito vivo. Tão logo foram colocados estes coletores, uma chuva horizontal de freadas alagou o trecho. Riscos ostensivos, propositais, de viventes que precisavam travar os pneus da bike ali de modo a deixar marca. Talvez – lá vêm minhas derivas associativas – isso tenha a ver com o gosto por pisar no cimento fresco da calçada e deixar a sola eternizada – nem vou discutir a eternização mequetrefe tendo em vista o estado e a duração média das calçadas em Curitiba.

Pisar no asfalto fresco, ou escrever o nome nesse asfalto, na carteira da escola, no muro, na casca das árvores, isso teria a ver com a ideia de escrever para se inscrever no mundo? Nomear para se sentir, no objeto, o sujeito que se busca. Que quer saber quem é e o que deseja. É preciso se diferenciar do outro e do grande Outro que dita as leis, criar uma divisão, delimitar fronteira sem deixar, contudo, de ser poroso à experiência da alteridade. Desenhar na caverna ou pichar o muro é materializar a existência simbólica, é gravar uma vontade/desejo, seja a vontade de matar a fome do corpo (o bisão flechado), seja o desejo de matar a fome de um nome (ambos insaciáveis, apenas momentaneamente satisfeitos).

 

Não consigo ler: outra alfabetização é necessária, para inscritos nessa cultura.

 

“Ilumine”, em verde, certamente é de alguém de fora da tribo.

Para não iniciados, apenas garatujas e gatafunhos.

A gente quer ser indivíduo, mas também pertencer a algo maior, pois nossa identidade só se dá em relação – de contraste, assimilação, negação… – ao que está fora de nós. É isso que forma nosso dentro. Pichar o muro é forma de pisar no cimento fresco da individualidade, marcar-se não somente para si mesmo, também para um grupo que consegue ler o signo. Pichar, escrever, desenhar, brincar etc é, portanto, inscrever-se no mundo a que se quer pertencer.

Muitos advogam para si a primazia sobre a atividade mais antiga da humanidade: bailarinos evocam as danças rituais, sacerdotes citam o apego ao sobrenatural, outros dizem ser a prostituição a profissão mais antiga etc. Pichadores podem se candidatar ao cargo.

Claro, temos uma história de ovo e de galinha aqui: escrever para inscrever-se, mas só escreve quem já está inscrito numa cultura.

A minha pergunta é reiterada: deixar marcas nas cavernas tem a ver com as pichações nos muros? A infância da humanidade, tentando simbolizar o real que a atravessava (expressão cara à Psicanálise), revive de alguma forma na infância do indivíduo. Porém, já que pichações em muros não parecem ter sido feitas por bebês, a lógica se estende a jovens e adultos que mesmo após a infância continuam reafirmando sua inscrição gregária. Aliás, esse texto aqui não é tentativa minha de inscrição numa cultura? Tentamos, mas nem sempre conseguimos, simbolizar as estranhezas do real que nos atravessa. Também a civilização, supostamente mais avançada, tem a pré-história dentro de si, primitiva, violenta, desejosa de miragens sempre escorregadias e que em vão tenta nomear.

Para dar uma pitada erudita a essa minha divagação, devo dizer que a convergência traçada aqui entre a infância da humanidade e a infância do indivíduo encontrou ressonância num livro bem famoso, mas que só li recentemente: O mal-estar na civilização, do Freud. É com ele que, contraditoriamente, concluo abrindo para mais questões:

A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelos instintos humanos de agressão e autodestruição.

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