O muro e o esquecimento

Os meus três pequenos ensaios anteriores pensaram questões da vida a partir do muro. Se quiser acompanhá-los:

O Muro

O muro e o amor

O muro: uga-uga, gugu-dadá

Agora, meu último texto da série: O muro e o esquecimento.

Esteja eu nas ruínas de Roma ou nas ruínas de São Francisco, em Curitiba, uma imagem recorrente entra na minha cabeça sem bater na porta e me joga no passado: penso tais ruínas habitadas pelas mulheres e homens de outrora, com seus conflitos, piadas, pregações, impregnando as paredes junto com o limo, a poeira e, hoje, a fuligem dos escapamentos (tudo escapa, afinal). Uma cidade não é só um agregado de partículas físicas. Olha, por exemplo, a belezura que o Italo Calvino conseguiu trazer para nós em, repare bem, As cidades invisíveis: “A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata”. Ou seja, ela – a cidade – é mais do que ela, é concretude e abstração. Como a esponja, é matéria somada aos poros vazios e abertos que esperam encharcar-se daquilo que se infiltra por seus vãos.

Estive no Peru recentemente e visitei as ruínas de Huaca Pucllana, onde viveram 3 civilizações anteriores aos incas. Eu pensava se alguém ali, mil e quinhentos anos atrás, no mesmo lugar onde pisava meu pé 42, teve uma coceira nas costas, tropeçou numa pedra, admirou sozinho e livre de teogonias as estrelas do céu de Lima. É que às vezes me vem uma ternura imensa pelo indivíduo que não vai ser lembrado, mais do que pela civilização que os livros de História conhecem, ainda que se fale tão pouco na escola sobre as culturas pré-hispânicas na América. Ou seja, é uma ternura sem objeto, feita de invenção. Eu tento apalpar o escuro do passado e trazer dali alguma luz que materialize o sujeito que existiu, mas de quem ninguém tem lembrança. Como fazer isso a não ser pela imaginação, juntando fósseis de ossos aos ofícios da ficção? Tentando a lembrança impossível do indivíduo que correu entre as ruínas de São Francisco, de Roma e de Huaca Pucllana eu espero, na contradição da desesperança, que alguém não me apague entre os 7 bilhões de pessoas que habitaram o planeta nesse período entresséculos que dividiram também dois milênios. É bom saber-se pertencido, só desse modo nasce o sujeito. Mas o sujeito, que só é o que é se pertencido, ainda assim sonha uma diferença em relação àqueles que o cercaram.

Claro, eu poderia pensar a mesma coisa sem estar em meio às ruínas, bastariam os prédios históricos ainda conservados, ou nem isso. Mas a ruína tem uma vida reinventada, ganhou em nosso olhar um status próprio, esqueleto sem pudor de mostrar a viagem pública que fez no tempo. Seu corpo é a própria testemunha da viagem.

Uma beleza contra a outra? Natureza e cultura buscando inscrição

Aqui, no tempo presente, que é tudo o que tenho, estico a imaginação até esse passado. Mas, de tanto esticá-la, ela se desgarra, passa por cima da minha cabeça e se lança lá no outro longe, aquele que está à nossa frente, o ainda mais incógnito mistério do futuro: se as casas, os edifícios, as cidades onde vivemos hoje terão a chance de virar ruínas e receber o olhar curioso dos turistas vindouros.

Pessoas e coisas. Ao manusearmos, dominarmos e escrevermos os e nos objetos da vida concreta, queremos nos agarrar a eles e nos inscrever no tempo, ficar no tempo. No mínimo, no nosso tempo, esse que fica ali parado enquanto a gente passa por ele, sendo transformado desde a ponta em que entrou até o fim da corredeira, quando a queda nos espera menos ou mais súbita, com ou sem aviso. A nossa história se confunde com a história das coisas. Quanta satisfação não sentiu um homem de quem ninguém mais se lembra ao acreditar-se eternizado por algum feito? Pensa o prazer da mulher, já desaparecida sem deixar vestígio, que inventou um novo modo de fazer algo que ninguém mais faz nem sabe o que é. É meio idiota comover-se com isso? Enquanto há vida, no entanto, somos sempre eternos. E os objetos, mortos, ganham substantivo na substância: vivacidade. Nunca chegará o tempo em que diremos assustados: e não é que eu morri mesmo? Enquanto houver um eu, haverá eternidade.

As trepadeiras avançam: o que o muro ainda tenta dizer?

Rebocos cedem, tijolos caem, a poeira afoga a parede em uma duna. E um dia a marca desse indivíduo que celebro hoje, na ruína ou no muro, que investiu contra os objetos suas mãos e pés, sua língua como corpo e palavra, desmorona.

Poeminha fora / de hora: / cai o pano / fica a humanidade / morre o humano.

O meu muro, de que falo desde que estreei neste Plural, é modesto, não tem o charme – visto que não tem o peso – da ruína, é murinho prosaico, contemporâneo demais pro meu gosto, pro nosso gosto. A ruína antiga é flor que assobia para os olhos, chamando-os; o meu muro é planta rasteira, serve para… servir. É muro tão vagabundo que vai se apagar antes das pessoas. Mas é um muro e, como tal, é um mundo. Ali, naquele objeto onde os sentidos da palavra concreto se encontram, indivíduos tentaram escrever e se inscrever, ficar um pouco mais, sentir-se vivos, beber um pouco da potência de existir não como corpo da biologia, mas como corporificação de um estar no mundo que, como a esponja de Calvino, também se encharca e assim se expande.

Porque há ainda o que está atrás do muro, bloqueado por ele. Há ainda o tijolo-barro escondido pelo chapisco, que recebe a tinta da palavra menos ou mais inteligível, que recebe a ação do tempo, que tinge de mofo, que espalha a umidade e permite crescer a trepadeira. A trepadeira, traiçoeira, apaga tudo. Mas se esquece: é ser vivo que, portanto, morre. E a palavra inscrita está sempre sobrevindo à tona, com ou sem muro. Ela viaja no tempo através dos corpos.

(Há também a cerca elétrica que encima o muro, evitando as gentes indesejadas, mas impotente diante da Indesejada das gentes).

O destino destes ensaios sobre o muro será o mesmo, aliás. Que nome damos às ruínas digitais, de pixels que se amontoam e dissolvem na babel das informações? Quem sabe, eis mais uma esperança, os textos sumam em breve, mas deles reste um resto fecundo, que se espalha de algum modo na palavra e no corpo de alguém.

Mas, mire, repare: o apagamento vagaroso formou aí dois olhos irônicos.

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