Já leu?

Costumo dizer que admiro e invejo as pessoas que assistiram a um filme e conseguem lembrar os nomes do diretor, dos atores, do roteirista e, colocando a cereja no bolo da humilhação, cantarolam a trilha sonora rememorando a cena precisa em que a música começa a tocar. Pior que isso só quem vai me falar sobre os livros lidos, mas pergunta antes: “Já leu?”

Existem milhões e milhões de livros, então a chance é muito maior, como de fato acontece, de eu responder não para o primeiro livro, não para o segundo e, claro, não para o terceiro. Eu não sei o que essas pessoas pensam, mas eu fico me sentindo o analfabeto do Mário Quintana: “O pior analfabeto é aquele que aprendeu a ler e não lê”. Isso pelo menos eu li.

É possível que em algum momento da minha já longa vida eu tenha mentido sobre isso. Se minha mentira fosse parar num tribunal, eu alegaria legítima defesa e depositaria minhas esperanças na empatia do juiz e dos jurados. Em vão: “Já leu a Constituição Federal, rapaz?” E eu: “É, assim, quer dizer, já li quase inteira, mas faz tempo” (isso é verdade, a não ser que eu esteja mentindo).

Como um neurótico que se preze, nunca sei na verdade o que os outros pensam quando eu enfileiro meia dúzia de nãos sobre já viu esse filme? Já leu esse livro? Já ouviu essa banda? Já viu as obras dessa artista? Conhece essa peça? Bem, eu não sei o que eles pensam, mas isso não importa muito, pois já estou sofrendo demais com o que eu imagino que eles estejam pensando. A minha cabeça, fabuladora de primeiro escalão quando se trata de elucubrar versões catastróficas, torna-se o juiz mais furibundo.

Eis que, a cada duzentos livros não lidos, finalmente há um que eu li, e então solto ligeiro e aliviado uns perdigotos junto com um SIM empolgado porque sincero. Empolgação que começa no S, se assusta no I e já se desespera no M, porque é comum eu não me lembrar direito do enredo, o que pode me fazer passar por mentiroso. “Li, claro, não tinha assim, tipo, uma personagem que fazia umas coisa muito lôka?”

Tarefa de casa: pensar se essa afirmação faz sentido: “Eu não me lembro do livro, só sei que ele me marcou”. De cara, eu acho que essa afirmação estapafúrdia faz todo o sentido para mim.

Tenho muitos defeitos como leitor, para ficarmos apenas em uma habilidade altamente valorizada no meio em que vivo: além de ter sido um leitor tardio – nunca li Kafka no original com nove anos, desculpaê –, sou um leitor lento – nunca vou poder dar uma entrevista dizendo que peguei os volumes de Em Busca do Tempo Perdido para dar uma olhadinha no banheiro, de repente aquilo foi me envolvendo – aqui eu reviraria os olhos e giraria o indicador – e, quando vi, em quarenta e três minutos eu terminei. Além de hemorroidas, eu certamente ganharia sabedoria. Isso sim é buscar o tempo perdido, e sem sair de casa.

Tardio e lento. Quer jeito mais autodepreciativo de vir a público? Hoje ser lento é palavrão dos mais ofensivos. Enquanto nas entrevistas de emprego, quando perguntados sobre defeitos, os candidatos dizem ser muito perfeccionistas, eu não teria chances se chegasse dizendo espera aí, me deixa pensar, me dá uns minutos, ah, já sei: sou lento.

Mas calma lá que eu vou tentar me defender. Há vantagens na lentidão? Há tanto problema assim em não lembrar direito o enredo de um livro? A fim de dar um ar erudito à minha ignorância, cito Umberto Eco, nos Seis Passeios pelos Bosques da Ficção. Cito de memória (vai por mim?): ele diz que há muitas maneiras de percorrer um bosque e que há leitores que o atravessam ansiosos por chegarem logo à casa da vovozinha. E há leitores que vão devagar observando o bosque, especulando caminhos possíveis.

Eu gosto de boas histórias que me deixam curioso para saber o que vai acontecer no final. Mas uma boa história mal contada é muito, bota muito nisso, é muito pior do que uma história meia-boca bem contada. Esprema Dom Casmurro, peneire o romance, jogue fora a elaboração de linguagem e deixe só a historinha: teremos uma novela das sete, apenas com um final menos feliz. Então eu criei essa coisa irritante: ler um romance quase como quem lê (bem) um poema. Há formulações de linguagem, há concatenação entre enredos, há diálogos estilizados ou naturais etc que me fazem fechar o livro e olhar o teto, sabe como? Porque a gente sabe que o olhar se fixou no teto, mas ele não olha nada que está ali fora, é um dos raros casos, tirando superfícies espelhadas, em que o olho parece enxergar a si próprio, virar uma cambalhota, se desdobrar do avesso e enxergar um cérebro pensativo e emocionado.

Eu já legendei um vídeo lindão de um psicanalista italiano, o Massimo Recalcati, chamado Elogio do Fracasso. Pois agora, num ímpeto de autocomiseração, faço o elogio da lentidão. Todo escritor precisa ser um grande leitor. A quantidade é importante, claro, mas desconfio que o que me fez escritor foi menos a quantidade do que a lentidão de minhas leituras, que eu tento transformar em qualidade. As histórias são as mesmas, falam de amor e ódio, com os tantos derivados dessa dupla. Mas o modo surpreendente como uma autora teceu as relações humanas só se dá pela linguagem, pelo frase a frase, por uma pontuação específica, por um engendramento que faz a página 21 ganhar um sentido admirável lá na página 257 e vice-versa.

Desconfio ainda (ando muito desconfiado ultimamente) que a apreensão mais rica e complexa do mundo como um todo se dá pela lentidão mais do que pelos muitos afazeres velozes, o que valeria estender o exemplo da leitura para outras áreas da vida. Fazer durante dez anos o mesmo trajeto de carro e depois experimentar caminhar por ele, e no sentido contrário, é exemplo dos mais bobos, mas eficazes.

Essa premissa, se verdadeira, explica por que na minha adolescência ouvir um disco era uma experiência e hoje, com todas as músicas do mundo num celular, a música virou pano de fundo e a ansiedade nos faz ouvir uma canção pela metade porque já quer pular para outra (sem saudosismos aqui).

Se não for verdadeira a premissa (eu mesmo já começo a soprar em meus ouvidos contraexemplos sabotadores do argumento), pelo menos foi uma tentativa de justificar meu jeito vagaroso de tentar me relacionar com o que me circunda e afeta. Porque experiência é mais do que ser rodeado por muitas coisas: é ser afetado por algumas delas, consciente ou inconscientemente selecionadas.

Comecei falando das pessoas que guardam na cabeça inúmeras informações de livros e filmes. Depois desse meu elogio da lentidão, no entanto, só tenho a dizer: a inveja e a admiração continuam. E meus cotovelos doem.

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