Corte e costura

Acontece um fato aqui, outro ali, uma leitura acolá, uma escrita alhures e eis que, naquele piscar de olhos pontuado por um eureca, percebo: tem um tema me perseguindo. Melhor, tem um tema fazendo questão em mim. Muita coisa nos rodeia, mas nem sempre provoca em nós uma questão. Até quando a gente se vale do clichê “eu faço questão de”, já tem algo aí: algo cutuca minha atenção de um jeito diferente, e se recorta do mundo apinhado de acontecimentos, ganhando relevo, contorno, nitidez.

Sabe a que tema me refiro? Ao tema das fronteiras, esses tracejados que cortam e costuram territórios, sejam os da geografia, os da palavra, da nossa relação com a identidade e a alteridade. As fronteiras são muitas, ora salutares, ora doentias, ora confusas e borradas.

Como dizem os tuiteiros, segue o fio:

Em 2016, terminei um romance que deve ser publicado até início de 2020 (me aguentem aguardem). Nele, proponho um cruzamento de destinos: um dos protagonistas, brasileiro, bailarino, desesperançado com a situação do país, resolve migrar para um polo importante da dança contemporânea, a Holanda; o outro protagonista é um holandês, atleta e alienado, mas que tem o namorado morto por um fanático, tem crises de pânico e decide que não dá mais, precisa de um país solar, decide se mudar para o Brasil depois de ser embalado por todos os estereótipos sobre o país. E o livro segue as vicissitudes desse cruzamento de rotas, atravessado por brasileiros, holandeses, haitianos, marroquinos.

Em 2018, começo a estudar psicanálise. Por “mera” curiosidade, uno meu desejo de voltar a traduzir do italiano e descubro o psicanalista Massimo Recalcati. Resolvo legendar alguns de seus vídeos e vejo que, entre as palestras dele, uma das minhas preferidas é “O estrangeiro interior que pressiona as fronteiras”. Uma aula linda sobre as fronteiras que nos constituem como sujeitos divididos dentro de nós mesmos e que também marcam uma linha divisória (porosa, contudo) entre o eu e o outro.

Eis que em 2019 surge uma oportunidade que eu abracei com entusiasmo: traduzir para o português um livro de Filosofia. De uma grande pensadora contemporânea, Donatella Di Cesare. O título? Estrangeiros residentes: uma filosofia da migração, a ser publicado pela Editora Âyiné talvez esse ano ainda. A autora passeia pelo tema resgatando filósofos que trataram do assunto ao longo da história e mergulha em uma defesa do mundo como passagem, do mundo como movimento e deslocamento, estejamos com as raízes fincadas na terra ou não. Veja, em primeira mão, um trecho do livro:

Se não é possível se colocar no lugar de um outro, há condições de, pelo menos, imaginar a dor dos outros, o sofrimento, a angústia, o tormento. O trabalho da imaginação, porém, não é facilitado pelas imagens correntes, que não revelam os contornos individuais, as características e peculiaridades do indivíduo. A imaginação é eclipsada pelo número, inibida pela massa. Por um átimo o olhar se fixa sobre uma mulher que, vacilando, desce de um navio. Mas como experimentar alguma sensação sem conhecer a história dela, sem saber nada dela? O exemplo contrário é o da literatura, que transporta além de si, em direção ao outro, mesmo que esse outro (…) seja fictício. Os efeitos políticos e éticos da generalização são devastadores. Longe das palavras, acompanha-se uma sequência de imagens capazes apenas de bloquear a imaginação. Quanto mais o bloqueio se repete, mais se é levado a identificar-se com o grande “nós”, distanciando de si a massa dos múltiplos “eles”. Em tal universo, reduzido à fixidez do preto no branco, o ódio passa a existir.

Forte, não?

Agora, o encontro final, que eu aproveito para transformar em convite: desde 2018, tenho trabalho como produtor executivo do Litercultura Festival Literário, um dos eventos de literatura mais importantes de Curitiba. Não preciso pedir para que você adivinhe o tema de 2019. Fronteiras: os territórios moventes da literatura e da nova geopolítica. Não foi à toa que escolhi o trecho acima do livro que traduzo: ele costura geopolítica e literatura, território e palavra.

Patrícia Campos Mello (Brasil), Leonardo Padura (Cuba), Bernardo Carvalho (Brasil), Juan Cárdenas (Colômbia) e Igiaba Scego (Itália) vêm conversar com o público mediados por grandes figuras da vida intelectual de Curitiba. Antes de cada fala deles, uma programação integrada que une música, poesia e cinema, sempre pensada a partir do tema das fronteiras.

Cada autor, além de sua conferência, enviou ao festival um texto discutindo o assunto – ensaios, depoimento, ficção –, que foi transformado em livro, numa parceria entre o Litercultura e a Editora Dublinense. Como cereja desse bolo, tive a felicidade de assinar o prefácio, de que cito os três primeiros parágrafos:

Precisamos de fronteiras para saber quem somos, mas ao mesmo tempo precisamos do outro, essa entidade que nos devolve, em forma de espelho e janela, uma identidade que vai além do documento-registro-geral-cadastro-de-pessoa-física. Assim como temos um corpo que nos define, assim como temos uma subjetividade que nos faz ser lá onde pensamos e onde não pensamos que pensamos, nossos limites são porosos ao mundo, carentes de outras subjetividades para a própria constituição.

Embora o in-divíduo creia ser a unidade mínima e indivisível da persona, o rótulo não se sustenta. Rótulos escondem mais do que definem, rótulos não deixam ver o que está atrás, apenas se colam à embalagem.

Literatura – a palavra! –, por sua vez, também é ponto de encontro e zona de conflito, é situação-limite, é experiência adensada por convergências e divergências do sujeito com a alteridade, esta sempre estrangeira, que pode nos levar a um deslocamento, a uma travessia. Com o sujeito e sua palavra, tenta-se compor um mosaico possível face às questões urgentes da imigração e da proteção assustada e belicosa das fronteiras.

Então, é a partir dessa coincidência – coincidência? – que nasce o convite para você compartilhar comigo e com todos os litercultureiros esse momento de costuras, integração e entendimento para além dos clichês sobre esse outro que, sim, diz muito sobre quem somos, seja o estrangeiro um vizinho, seja o do outro lado do mundo, seja esse que fez casa dentro de nós.

Serviço

Litercultura Festival Literário
De 12 a 16 de agosto
Capela Santa Maria – Rua Conselheiro Laurindo, 273 | Centro | Curitiba | PR.
Entrada gratuita
Os ingressos serão retirados a partir das 18h no dia do evento

www.litercultura.com.br

12 de agosto

18h30. Grupo Alma Síria – Trio de imigrantes vindos de Alepo, a maior cidade da Síria, traz a música e o canto árabes de seu país.

20h. Patrícia Campos Mello (Brasil). Jornalista, atualmente é repórter especial e colunista da Folha de S. Paulo. Lançou Lua de Mel em Kobane, que narra a improvável história de um casal de sírios que se apaixonou pela internet e arriscou a vida ao decidir se instalar na cidade de Kobane, sitiada pelo Estado Islâmico. Mediação de Christian Schwartz.

13 de agosto

18h30. Mostra de curtas-metragens

20h. Leonardo Padura (Cuba). Nascido em Havana, o romancista, ensaísta, jornalista e autor de roteiros para cinema ganhou reconhecimento internacional com a série de romances policiais Estações Havana. Tem nove livros traduzidos no Brasil, com destaque para O homem que amava os cachorros. Autor premiado internacionalmente – Prêmio Nacional de Literatura de Cuba e o Princesa de Asturias. Mediação de Mariana Sanchez.

14 de agosto

18h30. Nosso amor de trincheira, nosso trânsito de fronteira. Guilherme Gontijo Flores e Ricardo Pozzo leem poemas da poeta alemã Uljana Wolf.

20h. Bernardo Carvalho (Brasil). Um dos mais destacados romancistas da literatura brasileira atual, autor de mais de dez obras, recebeu diversos prêmios entre os mais importantes da literatura em língua portuguesa, como o Jabuti, APCA e Portugal Telecom. Mediação de Manuel da Costa Pinto.

15 de agosto

18h30. Literatura de Refúgio – poemas de várias nacionalidades lidos por alunos de Português como Língua Estrangeira do Projeto de Extensão da UFPR, o PBMIH (Português Brasileiro para a Migração Humanitária).

19h. Ninoska Pottella – música da Venezuela

20h. Juan Cárdenas (Colômbia). Tradutor e escritor, inédito no Brasil, premiado em 2014 por sua obra Los estratos (prêmio Otras Voces, Otros Ámbitos). Sua obra mais recente, El diablo de las províncias, “volta a questionar os mantras de uma civilização homogeneizada”. Mediação de Isabel Jasinski.

16 de agosto

18h30. André Abujamra. Show As 9 faces do Sr. Abu: uma viagem musical pelo mundo de um dos maiores artistas brasileiros.

20h. Igiaba Scego (Itália). Escritora e jornalista romana de origem somali, formada em literatura estrangeira na Universidade La Sapienza, em Roma. Como autora, ganhou vários prêmios e participou de inúmeros eventos, incluindo o Festival de Literatura de Mântua, que a hospedou em 2006, e a Flip, em Paraty. No Brasil, temos Minha casa é onde estou e Caminhando contra o vento. Mediação de Maria Célia Martirani.

Sobre o/a autor/a

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