Amor, mais uma vez

Salvo algo não salvo, ou uma pane no hd cujos arquivos não estavam com a cabeça nas nuvens, algo que salvei no meu computador e, para garantir, na tal nuvem, permanecerá intocado ao longo dos tempos. Um texto escrito dez anos atrás, ou este texto aqui reaberto daqui a dez anos, ambos surgirão na tela exatamente como foram escritos. O mesmo vale para as fotos. Porque a memória do computador, mesmo o das nuvens, é hard, é dura. E as memórias ficam registradas num ponto sem interferência de outras memórias. São gavetinhas bem compartimentadas.

Já a nossa cabeça é mole, mesmo que muitas vezes sejamos cabeça dura. O que guardei na memória da infância às vezes é esquecido para sempre; às vezes é esquecido como imagem que possa ser evocada, mas reverbera no nosso jeito de ser e agir; às vezes é lembrado de um jeito torto, muito diferente de um original que se perdeu, outras vezes é editado de modo que nos favoreça, outras tantas de um jeito que nos machuca, outras ainda foram borradas pelas memórias mais recentes e fizeram surgir outra coisa. Tem também a ver com o que Freud chamava de estranho familiar, recentemente retraduzido no Brasil como infamiliar. Cada experiência (não vou usar “experiência marcante” porque, se é experiência, é marcante) tem a capacidade de ressignificar a memória, ou seja, de significar de novo e de novo e de novo. Raras são as vezes que fixamos uma ou outra lembrança tal qual aconteceu, como alfinetes em um mapa. Estou propenso a achar até que isso nunca acontece.

Chrystèle Saint-Amaux – Etreintes

Como só eu estava onde estava em todos os momentos da minha vida – não posso deixar o eu em casa e viajar, tipo tirar férias de mim –, só eu fui atravessado pelas minhas experiências e atravessei o meu percurso. Sempre dou risadas com um amigo por causa dessa piada interna: em uma viagem minha à Itália, ele me perguntou como estava tudo e eu respondi: “tá bem legal, pena que eu vim junto”.

Muitas pessoas estiveram ao meu lado durante longos tempos, depois saíram, mas elas estavam sendo atravessadas por experiências delas, era a subjetividade delas que estava sendo marcada por outros sujeitos e objetos. O trajeto, cada um tem e faz o seu. De modo que: aonde eu quero chegar com isso? À ideia de que (oh, ruflem os tambores da informação que vai mudar a sua vida): eu sou único. Por supuesto, você é único, única.

Talvez por isso devêssemos saber que não existe fórmula para a vida, ainda que a gente busque isso nos gurus de todos os níveis. Tão bom quando alguém de fora chega esclarecendo todas as perguntas que o eu, meio cansado de tanto bater cabeça, não aguenta mais tentar responder, até porque, quando as respostas funcionam, não funcionam sempre. Por exemplo: não tem fórmula para o amor. Como nos agarrávamos às muitas autoridades que nos davam conforto e estabilidade até pouco tempo atrás – atenção para a sequência de pês: pai, professor, padre, presidente, papa, patrão – e tais autoridades entraram em colapso, para o bem e para o mal, perdemos referências modelares, isto é, bússolas que nos davam segurança, ainda que em troca nos impedissem de caminhar por nós próprios, seja lá o que isso queira dizer. Claro que há reação a essa ação, os novos conselheiros, menos autoritários e mais amigáveis, prometem a mudança pela força do pensamento em mensagens rodeadas por flores nas redes sociais, querendo nos vender fórmulas infalíveis e verbos cheios de imperativos. A contemporaneidade embrulhou tudo, né? Aliás, onde estava o fio do meu raciocínio mesmo?

A Paula Toller, do Kid Abelha, já cantava nos anos de 1980 o desejo irônico de encontrar a fórmula do amor. Problema é que a roupa do amor é sempre sob medida, não adianta fazer o cartão da Renner e escolher entre as centenas de peças iguais. É na experiência dos nossos encontros com o outro (os bons nos ampliam; os ruins nos encolhem), e que são únicos, que mora a nossa – veja bem – tentativa de viver o amor. E a vida, de um modo geral.

Mona Berga – L’Amour Sans Frontière

A psicanálise diz que passo a desejar a partir do momento em que descubro a falta. Especificamente quando percebo que não sou um só corpo e um só sangue em relação à figura materna. Quando me toco de que a mãe é um sujeito e eu sou outro, e ainda por cima que o desejo dela aponta para outros horizontes que não só para mim, aí sinto a fratura, a cisão, a castração. Sinto a falta. E é essa falta que, se de início parece ruim, vai me fazer caminhar, me deslocar, ir atrás das coisas, desejar. Se não houver falta, não há desejo. A plenitude pode ser um estado provisório, uma pausa, um refúgio, mas, se permanecer, decreta a morte do sujeito desejante.

Uma certa concepção de amor trabalha a ideia de que dois podem formar um. Entendo a tentação, e entendo até mesmo que essa seja uma busca, uma meta cujo alcance traria na bandeja o mundo ideal. Quem não quer o conforto de um amor? Quem não quer um “descanso na loucura”, como dizia o Guimarães Rosa? Mas, perguntemo-nos: também não queremos o mergulho na surpresa, também não nos inquietamos com uma vida sem projetos e suas necessárias projeções? Projetar é o latino projectare. O jetter francês e o gettare italiano dão pistas: jogar, arremessar lá na frente. Projetar é sonhar antes, lançar o sonho e ir correndo atrás para realizar – logo, implica movimento de busca –, mantendo a linha do horizonte sempre lá adiante e nos fazendo caminhar em direção a algo que nunca chega – a imagem é do Eduardo Galeano. Uma outra imagem, bem menos poética, tosquinha, é a da cenoura amarrada numa vara de pescar à frente do cavalo (do desejo). E não é a gente quem comanda o cavalo, mas é ele quem nos leva, muitas vezes desembestado.

Murielle Truchetet – Des strates

Então, numa relação amorosa, há um encontro de sujeitos atravessados por experiências diferentes. Durante a paixão (pathos: paixão, sofrimento, patologia, patético, lembra?), há um tipo de encaixe que coloca os desencaixes em um ponto cego, pois o que encaixa é tão reluzente que joga sombra nas quinas, nos cantos. A projeção do projeto vai bater no outro, linha imaginária do meu horizonte. Aquilo que busco desde a infância, quando perdi a ilusão de que eu completava o outro, aparece projetando-se ali, naquele outro que me maravilha. É a grande chance do reencontro com a completude. E se eu maravilho o outro da mesma forma, aí é só alegria e abobamento. Aí dá match. Só que a luz forte faz a gente fechar os olhos. E depois que o flash flecha e a gente volta a ver? Ao ver no outro o que ele de fato é (outro), o que fazer? É na impossibilidade de nos completarmos nesse outro – pois somos sujeitos da falta que deseja – que eu acho que pode começar uma relação, digamos, amorosa. O encontro de duas singularidades não é fusão, é um aprendizado de convívio com a diferença, sabendo que o outro não deve ser espelho de mim, que isso é impossível e vai me condenar a viver só enquanto durar a paixão. Não deixa de ser uma possibilidade, claro – “que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”.

Se a memória (olha ela aí de novo) não me engana (me engana que eu gosto), é a terceira vez que coloco o danado do amor num título aqui. E ele é peixe ensaboado, impossível de segurar. Termino mais uma vez fracassado, sabendo que ainda não disse o que eu acho que tinha para falar, mas não sei o que é. Não adianta, eu não aprendo: ainda escrevo para apreendê-lo. Mas algo me falta.

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