A era carne e osso

No início eram as trevas. E Deus, no primeiro dos dias após o tédio eterno que só quem sempre existiu pode sentir, salpicou o mundo de interruptores, energia elétrica, e viu que aquilo era bom; depois, foi colocando monitores, microtelas, internet, vídeos, áudios, rede social, entre outras maravilhas da natureza, com tudo o que a criatividade Lhe facultava.

Contudo, Ele viu que o mundo continuava monótono. E, a partir de nanochips esparramados pelo chão, colocou dentro da tela o Adão. Mas o Adão não tinha com quem teclar, não tinha pra quem mandar nudes. Da cos/tela pixelizada do Adão, Deus criou Eva em high definition.

Assim viveram as personas, caindo em tentações e em suas conexões, mordendo a Apple da discórdia e espalhando seus micro-soft-vírus para sistemas alhures. (Num modelito evolucionista, daria para dizer que o homem primitivo iniciou a cultura com a Idade da Fibra Ótica Lascada). Um mundo de novas possibilidades. E durante séculos e séculos, as personas viveram assim, reproduzindo-se em seus avatares e espalhando-os, comunicando-se – como era no princípio – pelas mídias virtuais originais.

(Aqui é possível, após o advento das Fakenews que dominou a Terra, Deus enviar um dilúvio de informações a fim de começar tudo de novo, dar um restart geral – com exceção de uma pequena mostra salva no pendrive de Noé, com backup nas nuvens. Porém, não adiantaria. A cada tentativa de recomeçar, só piorava. Deus desistiu e deixou as pessoas sozinhas, cada um por si e Deus nenhum por todos, ninguém por todos, todos por ninguém, salve-se quem puder, ou coisa que o valha).

Ciência e Tecnologia avançavam na velocidade da luz. Sites de notícias já faziam previsões que abalavam as crenças mais enraizadas. Autores deixavam a comunidade das bolhas boquiaberta e incrédula; os moradores das telas, maravilhados, fingiam horrorizar-se – os horrorizados fingiam maravilhar-se. Depois de muito diz-que-diz, tecla-que-tecla, um cientista anunciou, em rede internacional: “em menos de 50 anos, o ser humano será capaz de encontrar outro ser humano. Estamos chamando isso de personally (‘pessoalmente’, em tradução livre)”. Seria o início da era carne e osso.

Assombro. Discussões, implicações éticas e bioéticas. Mas nada parava o avanço rumo ao desconhecido. “Nós não sabemos por que queremos, só sabemos que queremos e vamos poder”, disse em entrevista alguém lá.

Até que chegou o dia em que as previsões deixaram de ser pré e se tornaram visões. Visões do que vinha sendo chamado de realidade real. Ainda que sob o espanto e a desconfiança da maioria, aconteceu: a vanguarda da humanidade – na figura de um bilionário idealista – deu dois cliques e abriu suas windows e portas USB. O figurão “conversou pessoalmente” (o neologismo da nova era) com sua mãe. Wireless, sem fio nem cordão umbilical, sem tela, sem nada. “No começo é estranho”, disse o empresário logo após falar “mamãe!”.

Um pequeno passo para a persona, um grande passo para a personalidade.

Não demorou muito para que a última geração possível do touch surgisse, dessa vez sem o screen. Começou com um “aperto de mãos” (handshake), que deixava a todos com cara de bobo. Depois, evoluiu para um abraço (hug). E evoluiu mais e tanto que as pessoas começaram até a querer entrar dentro umas das outras. Havia feiras com demonstrações inovadoras, posições diferentes para toques e entradas, muita coisa ainda estaria por vir, prometiam as startups do ramo. Além de tudo, a nova era já começava em 4D.

A tecnologia humana foi sendo barateada e cada vez mais pessoas tinham acesso às conversas diretas: “Nosso contato não é mais mediado, mediato, midiático, agora ele é direto, imediato. Isso parece não ter volta, quer gostemos ou não. Estamos diante de uma revolução”.

Os jovens eram os mais afoitos e criava-se um abismo geracional jamais visto. Críticos diziam que essa tecnologia deixava os jovens imediatistas e que o fenômeno já afetava crianças, aumentando os níveis de ansiedade devido à expectativa dos encontros.

As escolas inauguraram, para delírio de pais e diretores – embora alguns professores ainda resistissem – salas de aula reais, cujo contato entre professores e alunos, alegava-se, teria aumentado o rendimento escolar. Escolas que contavam com essas salas especiais de contato gozavam de prestígio incomum. Comunicar-se pessoalmente virou sinal de status.

Logo houve propagação de vírus e afins, levando os apocalípticos a condenar a humanidade, vaticinando um fim que estaria próximo. Mas as pessoas não queriam mais saber do mundo antigo, virou coisa de tiozão nostálgico, por exemplo, baixar música – a nova era já trazia shows hic et nunc. Abandonaram a natureza que julgavam grosseira e primitiva, estavam entregues – alguns diriam viciadas – àquele admirável novo mundo artificial.

Onde esse mundo vai parar? – pensavam os conservadores, já nostálgicos de um tempo passado.

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