Lia – Capítulo 96

Centro da cidade. Cidade, Curitiba. Quem diria?

Praça Tiradentes. Fim de tarde, tempo ameno, digamos que fosse setembro. Parece setembro. Olha se não parece…

A praça está diferente do que você veria hoje. Mais bonita, eu diria. Mais bonita…

Pouca gente. Nossa, tão pouca gente ali na frente da Matriz. A Catedral. A Basílica. Muito pouca gente mesmo.

Num banco, o senhorzinho sentado. Chapéu. Cigarro. Colete de lã debaixo de um paletó que definitivamente não foi comprado numa loja. Meias grossas caroçudas aparecendo por cima do cano curto das botas marrons. Mãos grossas, caroçudas, largadas nos joelhos das calças escuras. O cigarro? O cigarro está apagado.

Olhar ausente, destacado, que aos poucos, enquanto o cigarro vai passeando de um canto da boca para o outro, começa a perceber a realidade à sua volta. E o senhorzinho vira o pescoço o quanto pode (ao virar o pescoço o quanto pode para a direita o lado esquerdo do seu rosto se crispa de repente com uma dor aguda) em todas as direções, tentando ver o máximo possível do que um dia foi o Largo da Matriz, um dia foi Praça Dom Pedro II (dizem que o imperador, quando veio, ficou hospedado naquele hotel ali, logo na esquina).

Quem bom que para a esquerda o pescoço dele consegue se virar.
Hoje, naquela tarde daquele dia (tem um tempo isso, já), Praça Tiradentes. Com estátua e tudo. Em homenagem à República. À Proclamação da República. O Brasil demorou a se transformar numa “república”. Essa coisa “moderna”. Mas a Alemanha ia demorar ainda mais.

Dia bonito. Fim de dia bonito. Dava pra enxergar longe ali daquele ponto. No alto das ruas que se irradiavam da praça. Ainda muito espaço aberto. Ainda tudo tão extenso.

Quando ele chegou na cidade, cinquenta… mais de cinquenta anos atrás, sozinho… Sem ter a menor ideia do que ia fazer naquele lugar…

Quando ele chegou na cidade era tudo ainda mais amplo do que hoje. Curitiba estava crescendo rápido. E ali, bem no centro, esse crescimento era inquestionável. Curitiba, a cidade de Curitiba, agora era de verdade uma Cidade. Mercado Municipal logo ali ao lado. Movimento. Tanta, mas tanta gente. Tão diferente da Alemanha.

Mas o que é que ele sabe da Alemanha?

A Alemanha não existe.

O que ele consegue lembrar é da cidadezinha dos seus pais. A casa. A língua que o Johann ainda aprendeu. Ele ainda tem lá esses pedaços de casa por dentro. Mas fez a vida aqui.

E fez bem.

Essa terra foi boa.

Deu certo. Fez de um tudo por aqui. Com as mãos e com a cabeça. Cavou um lugar entre os brasileiros. Seu Otto. Eles diziam de um jeito esquisito. Seu ótu. Deram o nome dele pra um menino meio caboclinho que nasceu ali por perto do rocio. Virou brasileiro.

Os olhos claros, claros, claros, riscados de vermelho e cansados. Seu Otto Kappelhoff, que sozinho trouxe o nome a Curitiba. Sozinho, sozinho, primeiro. Puxa um fósforo e acende o cigarro que ainda não o matou.
Estamos em 1891.

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