Lia – Capítulo 93

Oi,

hoje quem te escreve é o Caetano.

Caetano Galindo. O sujeito que vem aqui te escrever essas cenas da vida da Lia. Tudo bem?

Eu estou aqui falando direto com você porque a história está acabando. Isso pode ter ficado meio obscurecido por causa da bagunça que acabou se instaurando na numeração dos capítulos depois da vez primeira em que a Lia morreu. Já faz tempo. Mas, fora este aqui, faltam só mais dois capítulos. E eu já estou meio doído de saudade dela.

Mas no fundo eu vim mesmo por causa da tampinha.

Deixa eu te explicar.

É que no prédio onde eu moro, uma construção de quase setenta anos, a fiação de internet, tv a cabo, e mesmo a de telefone, foi feita de um jeito todo torto, todo errado, que ao longo dos anos só piorou, na medida em que mais cabos inúteis iam ficando para trás sem jamais ser retirados e novos cabos iam sendo instalados na mesma linha. O que restou foi um bodoque gigantesco (uma matassa) de cabos de todo tipo, pendentes entre um poste lá do outro lado da rua e a fachada do meu prédio. Uma barrigona, uma rede de pescador dependurada por cima do asfalto.

Vez por outra essa gambiarra toda, esse sistema pra lá de vulnerável é afetado por algum motorista de caminhão mais desprevenido que arranca um dos cabos e deixa todo mundo sem internet, por exemplo.

Bem na frente da janela do banheiro aqui de casa, balançando por cima do pátio do prédio, esses ajambramentos todos redundaram numa espécie de emenda, uma caixinha com conexões de cabos, que quando foi instalada ali nas alturas era coberta por uma capa de plástico, ou de alguma borracha isolante preta. Uma tampa mais ou menos no formato de uma meia-cana, um meio-cilindro, que já há alguns anos também se desencaixou (provavelmente num desses sacolejões que os cabos tomam de uma ou outra caçamba mais alta). E ficou ali, pendurada por um arame fininho, balançando a cada brisa, segura apenas por um canto.

Eu, escovando os dentes; eu, vendo a minha mulher sair pelo portão com o cachorro; eu, olhando as flores das cerejeiras; eu, parado na janela do banheiro, olhando a tampinha pendurada, dependente de tão pouco, tão fragilmente estável. Anos a fio, por um fio.

E eu sempre pensando que um dia ela ia cair. Porque isso, afinal, era líquido e certo. Um dia um vento mais forte ia soprar e aquele arame não ia dar conta. Um dia a ferrugem que certamente ia aos poucos carcomendo o metal do mero risco ia chegar até a medula do aço e romper o liame. Um dia a capa ia cair nas pedras, sem estrépito (tão levinha..), e aquela história ia acabar.

Aquela tampa era uma alegoria pedindo uma leitura. Era uma Lia.

E nos últimos tempos, na medida em que essa história da Lia ia chegando perto do fim, a tampinha pra mim passou a ter uma ligação meio estranha com ela também. A ideia de que um dia a Lia morreu, e de que um dia a minha história com ela ia também chegar ao fim. Outro jeito ainda mais definitivo de se acabar. Sem ninguém ver, sem nem fazer barulho. Em algum momento. Num futuro talvez logo ali. Talvez mais distante. A ferrugem como a velhice, o cabo carcomido como o tempo que passa sobre um ser humano. Devagar. Aos poucos. E aos poucos eu achava que ia me preparando

mas hoje cedo, seis e pouco, um caminhão enorme simplesmente arrancou de uma vez só todos os cabos da rua. Catástrofe, estrondo, o inesperado… o baque afrouxou um poste e chegou a arrancar cabos de dentro das caixas dos corredores do prédio.

O inesperado.

Fui eu que catei a tampinha de borracha estatelada no piso do pátio.

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