Lia – Capítulo 90

As duas estavam ali há algum tempo. Ambas firmes nas cadeiras que tinham precisamente a função de mantê-las firmes. Vistas assim, contra a cortina cor de palha, luz de fim de dia, silêncio tranquilo, sons de passarinhos na amoreira, até podiam parecer imóveis. Ledo engano.
O que se passa na cabeça de cada uma delas resta para sempre inacessível. Não podemos recordar, num caso, sem deixar de ser o que depois nos tornamos. O risco é muito grande. Não podemos projetar, no outro, sem desejar não termos deixado de ser o que antes éramos. O risco é imenso. São duas pontas de uma mesma experiência, quase atadas uma à outra, reduzidas e ampliadas na mesma medida. Quem sabe mais capazes de se comunicar entre si?

A ver…

Ambas, no entanto, opacas para nós, que somos vida morna.
A mais velha tinha desde o primeiro momento os olhos algo baços presos na pequena. Inamovivelmente. A mão que repousava sobre a espécie de bandeja presa à sua cadeira desmentia o movimento do braço que apontava para a sombra da menina à sua frente, torcendo-se abrupta, num ângulo que já nem parecia natural, para uma postura crispada em que apontava, se apontava alguma coisa, apenas para o oco da forma seca que era o corpo de Lia. A mais velha.

A mais nova demorou algum tempo para perceber que não estava sozinha. Tinha muito mais com que se entreter, espalhando conchinhas de macarrão com molho ralo pelo rosto, pelas mãos, pelo chão, pela roupinha e na bandeja também presa à cadeira. Cadeirote. Mãos redondas com unhas quase de papel. Baba, molho e fiapos. Felicidade.

Quando os olhos das duas se encontraram, foi com certo fascínio que Valentina reconheceu aquela outra existência, encarquilhada, encolhida, recolhida num canto da cadeira de madeira como quem não merece nem mesmo ocupar um assento por inteiro. Cabelo ralo emplastrado no crânio. Suja.

Quando os olhos das duas se viram, foi com certo grau de encanto que a menina começou a emitir seus sons, as pontes que tentava lançar entre suas gengivas sem dentes e o resto dos seres do mundo, começou a brandir na direção da forma mais velha seus dedos roliços, gorduchos, quase tão incapazes quanto os da outra. Alegria.

Ficaram assim por sabe-se lá quantos minutos.

Inacessíveis a centímetros de distância. Isoladas em mundos que jamais poderiam se tocar.

Não haveria tempo. Valentina avançava voando para um ponto em que não mais teria Lia por perto. Corria o mais que podia (nem sabia), mas perdia, dia a dia, a chance de conversar com a mulher que um dia Lia foi, a chance de lhe mostrar a mulher que um dia seria. Lia corria acelerada rumo…
O mesmo sol que tocava agora as duas não dizia o mesmo a cada uma. Não trazia mais a mesma conta.

Quanto a terceira menina entrou na sala, parou um segundo, deu meia volta e apenas gritou para a mãe (a quarta). “A Tina fez a vó chorar.”

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