Lia – Capítulo 87

O trajeto todo era de paralelepípedos. Da casa à esquina, aí antipó na Eriberto Morrone. Pedacinho a mais de uma calçada mais irregular, meio improvisada, e o armazém da dona Margaró. Casinha azul e uma porta de garagem feita entrada. Balcão baixo e comidas e coisas de tudo quanto era tipo cobrindo as paredes de cima abaixo.
Atrás do balcão ficava um engradado com os sacos de leite.

Lia sempre gostava de ser a escolhida entre os primos pra ir comprar alguma coisa na dona Margaró. Mas dessa vez foi mandada sozinha. Eles normalmente iam de dois em dois.

Não tinha medo de andar sozinha por ali. Não naquele tempo, quando o mundo ainda não era seco e quando ela ainda não tinha se dado conta do que ser uma “ela” representava em termos de medos e riscos e exposições. Não era esse o problema.

Estava, já na ida, com certo receio, é bem verdade. Mas gerado pela responsabilidade. Pelo peso da responsabilidade. Pelo peso do saco de leite.

Já tinha, afinal, ido buscar leite outras vezes. Nada de novo nisso. Mas agora ia sozinha. E isso dava um certo suspense. E acrescentava à responsabilidade. Outra prima tinha derrubado um saco de leite, estourado, ainda na semana passada.

Ali, diante da dona Margaró, ela pediu. Não precisava nem estar com o dinheiro. Ficava tudo no caderno, na conta da vó. Os sacos de leite vieram do engradado para ela, dois!, não sem antes passarem por uma limpeza perfunctória com um pano da mesma cor da parede do armazém. Enxugar.

Eles ainda estavam gelados, e suavam.

E era essa a fonte da expectativa.

O trajeto todo era de paralelepípedos. E apesar de Lia não ter visto a cena, não conseguia tirar da cabeça a imagem do saco de leite estourado nas pedras grosseiras… a mancha branca sobre o quadriculado rugoso da calçada. A cara da Míriam.

Segurar os saquinhos com as duas mãos, no entanto, parecia estranhamente instável. Eles eram moles, eram frouxos e deslizavam. Parecia que queriam fugir das tuas mãos. Pareciam um bicho arisco. Ainda mais assim, dois juntos. Segurar por um cantinho dava a sensação de ser mais seguro. E era, ela achava, um tanto mais adulto. Era assim que a mãe carregava o leite. Entre o polegar e a lateral do indicador, braço solto na altura do quadril, sem nem dar por isso.

Tentou essa técnica.

Moça grande que era, sozinha na rua, responsável. Mas eram dois…

E o diabo do saquinho era gelado, seus dedos iam perdendo a sensibilidade e ele escorregava aos poucos, rumo ao chão, rumo à calçada fatídica. O da mão direita já tinha escapado uns bons milímetros, e ela não podia usar a outra mão para corrigir a posição porque o outro também já começava a descer.

E andar mais rápido ia aumentar a trepidação, minha nossa, e talvez fazer tudo acontecer mais rápido ainda. Correr era apressar a catástrofe. Restava seguir calma. E era só uma quadra, mas meu Deus que quadra enorme dessa vez.

E ela sentia que ia ficando vermelha, e sentia até uma lágrima surgindo no seu olho de moça grande e responsável.

Era uma questão de tempo. Era só (só?) uma questão de tempo.

Entre vencer a quadra, perder o leite, deixar de sentir a ponta dos dedos, ou a vitória.

Ah, a vitória….

E o caminho era todo de pedras.

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