Lia – Capítulo 83

Devia ser o meio da madrugada. Escuro completo. Um silêêêncio… Só a casa é que rangia um pouco, os vigamentos, o soalho: uns estalos.

Mas eu estava acordada havia horas. Ou ao menos era a sensação que eu tinha. O tempo não passava de jeito nenhum. E eu que nem usava relógio para saber, sentia o passo lento de cada segundo arrastado. A cadência pesada dos minutos noite adentro, pela madrugada.

Um frio!

O inverno naquele tempo era mais duro. Mais comprido e mais cortante. Tão mais duro.

Nessas noites de julho você ficava enroscada na cama embaixo de um monte bem pesado de cobertores, sem ousar se mexer demais porque a fronteira do frio nos lençóis estava sempre a não mais de dois dedos de distância de cada membro estendido. O teu corpo aos poucos consolidava um casulo, uma bolha de calor gostoso, desde que você ficasse rigorosamente imóvel.

Mas a dor ia me deixando inquieta.

A cada vez que eu respirava, um latejar, um pulsar, um fundo constante de dor. E respirar não era nada. Respirar era o mais fácil, ainda que o ar do quarto, que já me gelava o rosto, exposto, passasse pelas narinas deixando a sensação de uma onda fresca e áspera.

O difícil era engolir a saliva.

Eu já estava chegando ao ponto de considerar seriamente a possibilidade de deitar de lado, bem na beira da cama, e simplesmente deixar a saliva escorrer para o chão.

Cada vez que eu engolia, sentia um estralejar, como que um barulho quebradiço em todo o espaço que ia da garganta até a orelha. E com ele vinha uma pontada funda, um grito interno, um franzir do rosto e um revirar da boca. E a dor era tão grande que muitas vezes eu engolia só metade da saliva que tinha na boca, e no mesmo gesto de suportar a dor da primeira pontada tinha que aceitar o fato de que precisava terminar de engolir, e de conviver com a dor de novo.

E me sentia inconsolável por uns segundos.

Triste, injustiçada, maltratada por Deus e pelo mundo.

Segurava o choro pra não acordar ninguém. (A parede era de madeira, qualquer barulhinho chegava até o quarto dela.)

E voltava a sentir o frio. Voltava a me sentir inquieta, tentava me ajeitar de novo na cama. E, logo depois, era já hora de engolir de novo. E conter de novo o choro. E sentir de novo o gelo da dor.

Eu nem lembro como, em qual dessas várias sessões de tortura, eu simplesmente deixei de tentar. Não lembro como deixei escapar uma lágrima quente pela bochecha. E não lembro também do processo que levou dessa lágrima, desse soluço, ao choro todo, inteiro, ruidoso. A única lembrança que eu tenho é de já me saber gemendo alto, desconsolada, descontrolada.

Esse choro podia querer dizer muita coisa. Como sempre. (Por que é mesmo que a gente chora?) Mas aquele choro queria dizer uma única coisa. Mãe.

E ela entendeu.

O que eu lembro apenas é de me ver chorando alto, descontrolada, e de ela como que instantaneamente se materializar no quarto. Lembro também de começar a chorar mais alto quando ela entrou (socorro), e lembro de no mesmo momento ter sentido alguma vergonha de fazer aquilo (não vá embora). Lembro da camisola cor de pêssego. Flanela. Comprida. Lembro dos passos dela na minha direção (por favor) e da expressão no rosto da minha mãe. Que parecia querer ser capaz de pegar naquele mesmo segundo para si a minha dor.

Claro que a mera vontade dela não tinha esse poder (eu não aguento mais).

Claro que não se faz uma coisa dessas por desejo.

Mas se faz, ou ela fez, foi com a mão. Pousando a mão quentinha no meu rosto (tão bom): cabelo, bochecha, maxila, orelha. Fazendo aquele calor entrar pelo meu ouvido (mãe).

Ela fez com as duas mãos, porque a outra corria pela minha testa e dizia o meu nome, enquanto sua boca restava imóvel.

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