Lia – Capítulo 81

Ela não gosta de mostrar o que traz por dentro. Na verdade nunca gostou. Mas com o passar dos anos essa tendência foi ficando ainda mais clara. Um risco fino, em que apenas aparecia a junção da linha reta dos incisivos inferiores com o contorno mais quebrado dos superiores era o que normalmente o mundo podia esperar dela. E o máximo.

Os dentes eram uma espécie de símbolo de mortalidade. Estranho. Apesar de serem precisamente uma parte do corpo que se renova inteiramente num dado momento da vida, eles tinham (ao menos para ela, eles tinham) essa aura estranha. Essa capacidade de representar mais do que os cabelos grisalhos, de corporificar mais do que a pele seca e frouxa a decadência, passagem dos anos, o caminho rumo à morte. O desfazer-se de um corpo em algo repulsivo. Algo que morre ainda em vida.

Nunca teve dentes “bons”.

Dentes bons, afinal, descontados aqueles raros casos em que alguém simplesmente teve sorte e a genética colaborou, são sempre fruto de dinheiro. De uma alimentação melhor e de cuidados mais constantes. De intervenções profissionais ao longo de toda uma vida. Aparelhos, correções, obturações, restaurações, clareamentos.

Ela não teve nada disso. Pôde apenas contar (e que sorte já teve por isso) com as constantes visitas a dentistas mal-treinados que optavam ou por arrancar qualquer dente que tivesse problema ou, anos depois, por entupir de uma mistura de chumbo e prata cavidades do tamanho de uma cratera, que escavavam em dentes que apresentassem qualquer pequena cárie.

Deu destino melhor aos dentes da filha.

Mas os seus, mesmo depois de adulta, foram apenas merecendo cuidados paliativos. Quase todas as restaurações de amálgama trocadas por resina, por exemplo. Uma ponte. Um pivô. Mas ela nunca primou por cuidar de si própria. E isso se refletia, por exemplo, no fato de que várias dessas restaurações de resina eram nitidamente fruto do trabalho porco de um profissional preguiçoso (era uma profissional, na verdade). A cor não estava certa, o que deixava não apenas a coroa mas as faces laterais de alguns dentes como que riscadas, tigradas de laranja.

Laranja!

Outros dentes, especialmente os mais do fundo, continuavam recheados de chumbo. Um material já quase enegrecido pelo tempo. Um deles era obturado também na lateral. Mera casca de esmalte revestindo um núclo inteiro de metal.

Além disso ela tinha bruxismo. Rangia os dentes à noite.

Rangia tanto, e tão intensamente, que seus dentes eram como que balançados para frente e para trás, o que gerava um estranho esburacamento na base de cada um, como que um cavo por trás da gengiva, que precisava ser preenchido de vez em quando. Sim. Claro. Os últimos preenchimentos eram cor de tigre, contra o amarelo do esmalte envelhecido.

Tensão. Era isso. Outros molares já estavam novamente com esses buracos abertos, descobertos, como taças, como copas que se equilibram sobre estreitos pedestais.

Um pouco por causa do bruxismo, e muito por causa das décadas de vida, seus dentes estavam também separados. Havia cada vez mais espaço entre eles, o que de alguma maneira deixava ainda mais patente essa sua situação de decadência. Isolava cada ilhota contra o pano de fundo negro da garganta.

E isso, isso tudo, andava dentro dela o tempo todo. Como ossos expostos e mortos ao sol. Como o miolo mastigado de um corpo que apenas ostenta uma fachada de sobrevivência.

Dos dentes da frente ela cuidava um tanto mais. Você precisa ter algo para mostrar aos outros, se quiser que eles não vejam tudo. E deu sorte com a cor da resina quando isso foi necessário. Eles quase se juntavam, ainda. Quase cerravam a porta para o espetáculo triste do que ia apodrecendo ali detrás. Parede amarela para resto, que se perdia.

Apodrecia.

Por isso, o mundo via dela, do seu interior, um quase nada.

Era por isso.

Pequena janela apertada em que somente se mostrava a união, precária, dos dentes de cima e de baixo. Um sorriso.

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