Lia – Capítulo 80

Lia tinha sete anos quando soube que seu tio Gastão, de 73, “irmão” de sua mãe (41), não fazia aniversário no dia 17/11. Foi aliás exatamente num 17 de março que lhe foi dada a notícia de que, embora ela estivesse ali presente pela oitava vez, e no mínimo há cinco anos tivesse clareza do que acontecia, e da relevância daquela data na vida de sua família, o aniversário do tio Gastão no fundo só tinha ocorrido sete vezes em toda a sua vida. Dela. Lia.

Gastão era na verdade irmão da avó de Lia. E mais velho, para piorar. Mas nunca se casou. E os bisavós de Lia nunca o recebiam em casa depois que, com o casamento da filha mais velha, ele foi morar com ela. Lia, madura, entenderia, tarde demais, que o tio Gastão era quase certamente gay.

Quando a mãe de Lia se casou, muito cedo, o tio Gastão, desde sempre chamado de “irmão”, apesar da gritante diferença de idade, foi também morar com ela. E já que o casal demorou bastante a ter a única filha, seu papel de “irmão” mais velho foi ficando cada vez mais sólido. E seu aniversário, desde que Lia se tinha por gente, era parte central do calendário. Até antes de ela se conhecer por gente, afinal.

Naquele ano, sem grandes porquês, no meio da conversa com bolo de fubá, depois de cantarem o parabéns para o tio, a mãe começou a falar do passado. De como as coisas tinham mudado. De como devia ser diferente o mundo em que o “irmão” tinha vivido a infância.

— Veja isso do teu aniversário. Onde já se viu uma coisa dessas?

Os adultos riram. Lia quis saber o motivo.

E o motivo era que o tio na verdade tinha nascido no dia 19 de outubro. Mas como demoraram a registrar a criança, decidiram anotar na certidão a data da visita ao cartório. E não do parto. Porque sim.

E com isso na verdade o tio tinha dois aniversários. Dois!

Um “público” e outro que só a irmã e sua família conheciam.

E foi ali que Lia decidiu que também queria um aniversário secreto além do outro, o normal, de todo mundo. E pelo resto de sua vida ela celebrou duas vezes por ano, não só no dia

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