Lia – Capítulo 75

Era tarde. Passava das 10, as últimas aulas da noite iam se encerrando.
O prédio ficava cada vez mais vazio, mais silencioso. Estava chovendo pesado, e Lia de volta à sala dos professores.

Normalmente os temporários não tinham acesso à sala. Ou, se tinham, não mereciam nela um espaço para guardar as suas coisas. Mas a colega que convidou Lia a dar aquelas aulas durante um semestre lhe concedeu uma gaveta no armário da secretaria. E ela achava (achava…) que tinha deixado ali a sombrinha de alumínio.

Passou correndo sem acender a luz nem fechar a porta. O movimento da capa aberta levantou uma folha solta que tinha ficado na impressora. Ufa: a sombrinha estava ali.

Já com a mão de novo na maçaneta, ela suspira um tanto contrafeita e volta para catar o papel caído. O enunciado de uma prova. Coisa de gente de letras. Literatura. O começo de um poema bem no alto da folha.

Lia nunca foi de ler poesia. Nem de ter curiosidade. Mas a réstia de luz da porta aberta batia bem na folha branca, e num reflexo, como alguém que abre o lenço onde assoou o nariz, ela não pôde deixar de correr os olhos pelas palavras.

Quando não sei o que sinto, sei que o sinto é o que sou. Só o que não meço não minto.

Um, três, dez segundos com o barulho da chuva pesada na janela.

Quando não sei o que sinto, sei que o sinto é o que sou. Só o que não meço não minto.

O temporizador da luz do corredor deixou tudo no escuro.

Lia sentou no chão, diante do balcão da secretaria, e recitou em voz baixa, pela primeira vez para sempre, o fragmento do poema.

Tremia um tanto.

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