Lia – Capítulo 73

— Por que ela?

Vamos fazer assim. Imagine uma sala (melhor um pequeno ginásio) em que estejam mil pessoas. Melhor, mil e vinte e quatro pessoas pessoas e um altofalante. Mil e vinte e quatro pessoas, cada uma de posse de uma moeda. E um altofalante.

A voz da cabine de comando se dirige aos indivíduos ali presentes (homens, mulheres, de idades variadas e provindos de classes sociais díspares. Dois cadeirantes. Um cego e uma moça com problemas severos de audição. É até bonito. Eles estão lado a lado, e é ele — baixo, seco, rugas profundas — quem sopra alto no ouvido dela as instruções da cabine de comando.) e pede que peguem suas moedas e as lancem no ar, pegando com a palma da outra mão antes que caiam no chão e memorizando o resultado.

Em seguida, a voz pede que todos aqueles que tiraram coroa deixem a sala.
Os que restaram, no tempo que leve para que os outros saiam pelas duas grandes portas de emergência no nível da quadra, vão rapidamente se dando conta de que, pelas boas e velhas leis das probabilidades, cerca de metade de todos os presentes tiraram coroa. Digamos, para facilitar o nosso experimento, que tenha sido exatamente a metade. Assim, saem pelas portas largas 512 pessoas (os dois cadeirantes! Logo na primeira rodada…), exatamente o mesmo número das que ficam.

Olhares de curiosidade.

Casais separados por essa primeira moeda. ( —Me espera ali fora?)

Como se poderia esperar, a voz incorpórea, depois que o grupo se aquietou, pede que todos façam de novo seu cara-ou-coroa. As leis da probabilidade, neste meio tempo, não sofreram alterações fundamentais. Com isso, 256 pessoas levantam os olhos da palma da mão já com a certeza de que serão convidadas a se retirar. Algumas riem. Outras parecem aliviadas. Umas poucas parecem contrariadas ou, melhor, decepcionadas.

Dito e feito. A voz pede que saiam.

Entre os 256 restantes começa a se desenhar certa camaradagem.

Brincadeiras.

Nova rodada e, como não poderia deixar de ser, mais 128 pessoas deixam a sala, informa o senhor cego à moça surda.

Os que ficaram começam gradualmente a perceber que está ficando frio no ginásio. Aquelas portas escancaradas. O vento que vem de fora…

A rodada dos 64 vem quase sem pausa, e agora cada grupo leva muito menos tempo para sair e, os restantes, como que motivados pelo que já parece um jogo, muito menos tempo para como que ficar em posição, esperando o novo comando.

A ordem para jogar de novo as moedas dessa vez parece demorar. Mas o resultado, depois, é o mesmo. Claro. Agora são 32 pessoas no ambiente que poucos minutos atrás continha mais de um milhar. E essas 32 pessoas vão se transformar em 16 em questão de segundos. (Parece que as ordens do autofalante agora chegam antes mesmo de os eliminados saírem de cena. A cabine de controle tem pressa? Ou será que as pessoas já caminham mais lentamente para as portas, olham mais para trás?)

Os oito participantes que ficam depois de mais um lance já quase não se olham. Vários se entregam a curiosas superstições. Sopram a moeda entre as mãos. Mantêm os olhos fechados enquanto ouvem a ordem. A cabine precisa intervir quando uma pessoa não consegue pegar a moeda com a mão (curiosamente a primeira vez em que isso acontece), determinando que leia o resultado ali mesmo, no chão. (Eles agora já conferem, com maior ou menor discrição, o resultado das moedas dos outros).

Agora são quatro.

Dois.

(Trata-se de um experimento mental. Haveria muito boas chances de que essa última rodada, tivesse que ser realizada mais de uma vez.)

Mais um lance. Duas moedas. E ficará apenas uma pessoa no ginásio. Ela, também, ouvirá o altofalante agradecer sua participação e pedir que se retire. Nada mais que isso. De um ponto de vista estatístico, nada de anormal aconteceu aqui. Cada rodada teve precisamente o resultado equitativo que seria de se esperar. Pontos anônimos foram registrados em gráficos anônimos.

Agora, veja bem, aquela pessoa que está ali saindo por último do ginásio, sem saber se celebra ou não, jogou dez vezes sua moeda e tirou cara dez vezes seguidas. Dez vezes seguidas.

Parece especial.

— Lia?

Não.

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