Lia – Capítulo 60

Na casa de Lia, por razões que nem mesmo a razão conheceria, sempre se picou cebolinha com tesoura. E essa foi tarefa dela desde menina. Desde que a pia da casa lhe batia pelo peito.

A salsinha do cheiro-verde ia simplesmente desfolhada. Ou rasgada se precisasse. Mas a cebolinha era na tesoura. A grande, de desossar frango. Ela segurava o maço bem alinhado na mão esquerda e ia empurrando pra frente com o polegar, liberando os talinhos pra tesoura cortar.

E contava.

173 picotes, por exemplo.

Curiosamente, não queria saber quantos anéis de cebolinha resultavam. Tivesse ela 4 ou tivesse 7 talos na mão, queria só saber quantas vezes a tesoura fechava. E também não tencionava guardar esses números. Comparar com os de outros dias.

Contar as tesouradas era só uma coisa que ela fazia. Quase sem se dar conta.

Contava as vezes que esfregava as mãos no couro cabeludo depois de ensaboar o cabelo (basicamente a cada vez que a mão direita vinha na direção da testa ela contava uma vez). Contava às vezes sem nem prestar muita atenção o número de vezes que sua perna esquerda subia e descia (centenas) enquanto ela, impaciente, esperava que sua mãe fizesse alguma coisa. A não ser que essa alguma coisa, por exemplo, fosse cortar seu cabelo. Nesse caso, o som da tesoura é que gerava a nova série de números.
Ela às vezes contava passos. Distâncias. Mas nem sempre.

Porém, sempre contou degraus de escada. Ou melhor, movimentos de subir degraus, porque desde muito jovem ela subiu escadas de dois em dois degraus.

E aqui também a contagem não tinha qualquer objetivo, e nem mesmo apontava para algum detalhismo. Depois de morar por 21 anos no mesmo apartamento, ela não saberia dizer quantos degraus tinha que subir da entrada até seu terceiro andar. Mas sabia que em geral dava 43-45 passos para subir todos eles e cobrir a distância entre os lances, nos patamares que os dividiam.

De que isso servia?

*

Foi um dia, naquela mesma subida até o terceiro andar, um dia de sol morno, vento nulo, passarinhos… foi numa quarta-feira pouco depois do primeiro derrame que Lia de repente se perguntou de que aquilo servia. Foi na altura do passo 72. Digamos.

Que o hábito que a menininha criou e a senhora mantinha, de ir como que em segundo plano registrando a corrente do tempo, o passar dos momentos, o andar e o ir-se das coisas finalmente se interrompeu. Sem mais. Ela nem mesmo achou estranho. Só sorriu de leve, pé esquerdo no patamar e pé direito pronto a tocar o primeiro novo degrau.

Ela parou ali, por um breve instante, suspensa a meio-caminho. E percebeu que isso, o estar a meio-caminho, valia mais que o 72 ou o 73 mal percebidos. Era um zero. Em suspenso. Era suspense permanente. Era bem mais vivo. Valia prestar atenção.

Ela sorriu. Fechou os olhos. Respirou bem devagar. E prosseguiu.

Um. Um. Um. Um…

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