Lia – Capítulo 6

Romances podem ser como filmes. Este é como um álbum de fotografias.
Como fotos, os capítulos podem ser lido por si sós. Como álbum, o romance pode ser lido em qualquer ordem: o que lhe dá sentido (nos dois sentidos) é a vida que registra.
Lucília Paula Kappelhoff, a Lia.

Lia sempre teve o cabelo muito fino. E pouco. Pouquinho cabelo. Daquele tipo que deixa até ver a cabeça, com a luz certa. Ver o couro cabeludo.

*

Ela sentada no sofá de casa, um pouco com sono, na frente da tv desligada, do lado da peônia que andava murchando no vaso. O sofá era de um tecido amarelo bem suave, e a peônia, ainda uns dias antes, tinha praticamente tudo quanto era tom de rosa. Um desbunde. Exagero de flor. Mas agora, cabisbaixa, andava mais rala de pétalas, todas mais claras, mais secas. E muitas já voltadas à terra.

Não foi a Lia que plantou a peônia. Mas agora era ela quem cuidava da flor.

O motivo de a televisão estar desligada, e Lia com um pouco de sono, era que ela não estava sozinha na sala. Havia três meninas com ela. Uma na cadeira de balanço, sem sapatos, meias roxas. Com as pernas encolhidas no assento. E duas juntas amontoadas na poltrona verde. Enquanto Lia, sozinha, ocupava um mero canto do sofá inteiro: o lado que quase encostava no vaso.

Uma menina era japonesa. A outra, não. Essas, as duas da poltrona. As apertadas.

A terceira, que balançava leve e não parava de falar, olhos imensos de alegres, tinha o cabelo bem fino também. Com o queixo apoiado nos joelhos recolhidos, deixava ver a pele rosa da cabeça. Foi ela quem convidou as duas outras. Estava orgulhosa e animada com a festa particular. Foi ela, também, quem insistiu que Lia ficasse ali conversando junto, depois da janta. Insistiu mesmo, de querida que era.

E Lia agora ali ouvindo a conversa das três, fazendo um ou outro comentário, normalmente uma pergunta, só pra ver o que elas diziam, como pensavam, o quanto sabiam, o quanto diziam pensar que sabiam. E com que convicção, meu senhor.

Lia achava bonito.

Moças.

*

Sentiu uma coceirinha na cabeça, e ergueu a mão. Casquinha solta. 

Nã. 

Estava solto demais, aquilo. E era meio grande. E… e se mexendo. Ui, que era um bicho! Credo. Um bicho na cabeça, meio enroscado no cabelo, meio querendo sair sozinho, e sem conseguir. Coitado, também.

Ela não queria chamar a atenção das meninas. Não queria dar impressão de que era uma velha grudenta futucando carepa. Aquilo já tinha passado do tempo normal de alguém coçar a cabeça em sociedade. E muito menos queria demonstrar que tinha de fato um bicho vivo emaranhado no cabelo. 

Conseguiu catar o inseto, desembrulhar dos fios do cabelo e tirar entre dois dedos da mão esquerda. Baixou a mão no colo, ainda sem olhar, mantendo o sorriso meio mole na direção das meninas. Que mal perceberam. Lia, nem se preocupasse.

Arriscou uma espiada. 

A coisinha era meio que um meio de caminho de mosca e besouro. Preta e corpulenta, com umas pernas compridas atrás. Uns culotes. E coberta de uns pelinhos finos.

Tinha umas asas, mas não voava. A coisinha parece que estava morrendo. Mas Lia nem apertou, nem esfregou aquilo no cabelo quando pôs a mão. Não foi ela. Cruzes. Disso ela tinha certeza. Tirou aquilo da cabeça com todo cuidado. 

*

Só que aquele bicho ia morrer.

Lia, mãos postas no colo, conseguiu passar a quase-mosca para a outra mão e, simulando um gesto de sono (Ai, droga! Sono não, Lia, que vai parecer que você está dando indireta!) que rapidinho transmudou num estranho modo de se ajeitar no mesmo lugar, largou o inseto, de costas, contorcido, na terra da peônia. Ou nem terra, que sem poder ter grandes escolhas, sem querer chamar atenção, ela acabou foi largando o coisinho em cima de uma pétala caída, clara-clara… E ele ficou ali, exposto, virado, longe dos olhos das três gracinhas que mal davam bola para aquele lado inteiro da sala, virado, torcido, morrendo de costas tão cedo.

Podia levar dias.

Podia ser a qualquer momento.

Mas o bichinho agora estava morrendo, a olhos vistos. E ia morrer ali e ela ia ver.

Fazia questão.

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