Lia – Capítulo 57

Ela precisava.

Era a única coisa, naquela fase da sua vida, de que ela realmente precisava. Vinha se tornando uma espécie de boia salva-vidas, de linha de segurança. Momento de estabilidade.

Era tudo corrido, tudo era uma corrida. O dia a dia, o trabalho, a filha. Mal tinha tempo de comer se queria garantir que a menina teria o que comer, e se quisesse preparar o de comer para a menina. Mal tinha tempo de ser Lia.

E fazer isso tudo sozinha. Lidar com tudo isso sozinha. E não demonstrar nem o assoberbamento nem a solidão, nem a dor da solidão, porque a filha não precisava daquilo, simplesmente não tinha que lidar com tudo aquilo. Já tinha passado por tanta coisa. O hospital e tudo mais…

Mas agora o ônibus da escola tinha passado. Ela viu pela janela a menina subir com sua mochilinha e ser engolida pela porta que, ela quase podia ouvir, emitia seu satisfeito bufo pneumático. Agora o ônibus da escola tinha dobrado a esquina com a filha lá dentro. E Lia tinha quase uma hora antes de ter que sair para o trabalho. Bendita defasagem de horários.

Ela levou poucos dias para decidir como ia empregar esses minutos.

Nada de perder minutos preciosos decidindo a roupa que ia usar. Nada de gastar tempo na frente do espelho, com maquiagem. Nada de fritar na frente da tristeza abissal da televisão naquele horário da manhã.

Aquela era a janela possível para ela respirar.

E o que em poucos dias ela começou a fazer foi o seguinte: ela dava o café da manhã para a filha ainda meio apressada, enquanto lidava com mil pequenas tarefas, cuidava do horário, ajeitava o uniforme, preparava a merenda. Mal tinha tempo de comer, se queria fazer tudo que tinha de fazer.

Mas quando a menina saía de casa, ela respirava bem fundo e pegava uma bandeja.

Duas fatias de pão. Tomates frescos fatiadinhos. Umas folhas de manjericão arrancadas do vasinho do beiral. Um pote de iogurte natural. Mel. Umas azeitonas pretas. Azeite de oliva. O prato mais branco e mais liso. Um copo d’água bem gelada. Uma xícara de café recém passado. Um sonho de valsa.

Sentar na varanda (era ainda o finzinho do verão) e olhar para tudo e para nada. Mastigar de olhos fechados. Ouvir os passarinhos e os movimentos dos vizinhos. Barulhos dos carros andares lá embaixo. Uma ou outra voz perdida. Cheiro do café dos outros. O sol no rosto ou não. Se chovesse, o barulho da chuva e seu cheiro também.

Uma única vez, semana passada, choveu tão forte e tão inclinado que molhou Lia, bandeja e comida. Mas ela ficou ali, e ficou com um sorriso no rosto.

Era quase uma hora, o que tinha. E valia.

Por mais que saísse correndo, deixando a pia cheia de louça para a noite, que seria corrida, corrida, corrida.

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