Lia – Capítulo 55

As meninas todas perceberam. Wanda, a Ercília. Todas as meninas perceberam.

De início a Lia fez que era a única que não via. Fez que não era com ela. Mas levou coisa de segundos pra começarem os comentários. Pras outras irem apontando o menino do outro lado do pátio que não parava de olhar pra elas. Que não parava de olhar era pra Lia, como foi ficando cada vez mais claro.

Hora do recreio. Todo mundo de uniforme. As meninas, vestidas com a mesma roupa, davam sempre um jeito de ficar diferentes. Não bastava só o cabelo claro, cabelo escuro, o volume de cabelo. Não bastava a diferença gritante de altura entre aquelas que já estavam dando o estirão de crescimento e as que ainda restavam pequenas (ficariam pequenas?). Elas conseguiam sempre mexer um tiquinho no uniforme e deixar com uma cara individual. Os meninos não.

Os sapatos diferiam um tanto, claro. E marcavam direitinho o dinheiro das famílias. Mas os cabelos naquele tempo eram todos parecidos. E tão curtos. De longe eles pareciam uma massa morna indistinta. Um rumor. Uma coisa que pulsava e que de algum modo significava sempre um risco de explosão. Mas o menino novo, que chegou segunda-feira de outra cidade, ainda tinha permissão para vir para a escola sem o uniforme completo. Blusa branca de gola alta naquele dia. Bem branquinha. E usava o cabelo preto e liso mais comprido, quase caindo por cima do olho direito. Menino bonito. Pequeno, baixinho. Mas bonito. O menino diferente.

E era ele que estava desde o começo do recreio (desde o começo da semana? era quinta-feira, já… daqui a pouco o menino seria como os outros…) olhando de canto de olho para a Lia. Não importava o que estivesse fazendo, correndo com os outros ou sentado, comendo sozinho. Ele sempre dava suas espiadas. Esticava o olho. E nunca precisava procurar. Sabia exatamente onde Lia estava a cada momento. Estava atento.

Lia ainda agora há pouco tentava negar. Que é isso. Onde já se viu.

Mas tinha percebido há dias os olhares do menino.

Hélio. Helinho.

A diferença era que agora os meninos estavam também falando disso. Não havia como não perceber. Tinham se formado dois campos (rivais?) no pátio da escola. De um lado, em cima da plataforma pequena que levava até a capela, as meninas sentadas em volta da Lia. Concílio. De outro, os meninos de pé, rodando em torno do Hélio e apontando com a cabeça, em gestos que só eles podiam considerar discretos. As outras crianças continuavam correndo por ali. Jogando futebol com bola de meia. Brincando de mãe-cola. Mas tudo tinha ficado um tanto mais quieto por causa do menino da blusa branca e da moça cercada pelas amigas.

— Acho que ele está vindo falar com você.

Elas estavam empolgadas.

Mas Lia tinha percebido que os outros meninos tinham quase empurrado o Helinho. Ele chegou até a esboçar o gesto de voltar. Mas os outros já riam. Tinha dado o passo à frente: eles não estavam mais ao lado.

Ele veio caminhando devagar, cabisbaixo, com o rosto escondido pelo cabelo que agora lhe caía sobre a testa toda. As meninas trilavam. Vibravam. Era a primeira vez que isso acontecia ali, no pátio da escola, na frente de todo mundo. Lia não recebeu um empurrão. Foram as outras que deram discretas seus passos atrás enquanto o menino ia subindo os cinco ou sete degraus.

Ficou parado ali na frente dela. Observado pelos outros lá de baixo. Sob os olhares delas ali atrás. Cabisbaixo diante de Lia, meio palmo mais alta que ele.

— Oi?

Ele ergueu os olhos para ela, queixo tremendo.

Alguém, algum dos meninos gritou uma coisa qualquer. Os outros riram bem alto.

Helinho, sem tirar os olhos de Lia, chutou a canela da menina. Sem muita força. Mas ralou. Levantou pele. Tirou sangue.

Doeu.

Ela também não tirou os olhos dele. Não tirou os olhos dos olhos dele enquanto ele esteve ali de pé. Não tirou os olhos daquele cabelo preto e bem liso quando ele se abaixou, tremendo, segurou sua perna, chorando, e deu um beijo.

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