Lia -Capítulo 53

Eu me lembro de Maryla Schenker.

Ela nasceu em Cracóvia, na Polônia, no dia 20 de março de 1913. Eu sei que naquele dia, naquela latitude, o sol nasceu antes das seis da manhã, e se pôs antes das seis. Sei que o horário de verão só seria adotado alguns anos mais tarde na Polônia.

Posso, se quiser, descobrir o Produto Interno Bruto do país.

Sei que sua população total era de cerca de 20 milhões de pessoas, e que o nascimento de Maryla fazia parte de um lento processo de crescimento que, ao final da adolescência da menina, teria acrescentado mais 15 milhões de nomes àquela história. Sei que poucos anos depois, no entanto, a Polônia teria de novo pouco mais de vinte milhões de habitantes, e que poucos dados estão disponíveis para o período correspondente aos anos em que Maryla chegava (chegaria) aos trinta.

Sei que milhões daqueles nomes hoje estão escritos em memoriais, e descendentes. Apagados antes da hora.

Sei que o nome dela já é um diminutivo de Maria, nome feminino mais comum àqueles tempos. Sei também que teria sido chamada de Marysia, Marysieńka, Mańka, ou qualquer outra das dezenas de formas carinhosas que seu nome adota entre os poloneses.

Sei que seu sobrenome significa “doador”. Maria Doadora, como a mãe de Deus, claro, num país tremendamente católico.

Sei que Maryla, como Maria, e como seu filho Jesus, era judia. Sei que foi sua irmã, Nina, quem forneceu os poucos dados biográficos que não são especulação a respeito da vida de Maryla, até sua morte em 1942. Porque cada um de nós, os que morremos, havemos de sempre deixar uma irmã. Por vezes pais. Um lugar à mesa, um vestido vazio.

Eu lembro Maryla Schenker. Sei que a morte, o acaso, Maryla, precisam sempre existir.

Auschwitz, não.

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