Lia – Capítulo 52

Lia é feita de carne e osso. E de pele, de unhas e dentes, de pelos. Como eu, como você, ela é um invólucro algo mais ou menos estável para um conteúdo potencialmente instável, inclusive em termos mecânicos, dinâmicos. Não fosse o invólucro (e sua estrutura interna), Lia se desmancharia no ambiente. Desmontada, desmoronada. Inexistente.

O que a mantém como entidade independente é o que a separa de outras entidades. E lhe dá unidade.

A pele de Lia se partiu, se rachou, cortou-se em ocasiões sem conta. E se refez. Com cicatrizes, claro, bem frequentes, mas sempre se recompôs e continuou contendo uma Lia inteira. Mais do que isso, a pele de Lia se reconcebeu continuamente durante a sua vida toda. Um filme acelerado em que essas perdas microscópicas se fizessem visíveis mostraria um corpo vivo que se move entre corpos vivos e inanimados, deixando atrás de si, à sua volta, um rastro permanente de morte. Poeira de pele desfeita. Células soltas. Raspas de Lia.

Cabelos ela perde todo dia. Como todos.

Junta pequenos maços quando lava a cabeça (e cuidadosamente vai deixando essas meadas na parede de azulejos, aderidas, para depois colher tudo com um movimento espiralado do dedo e jogar no lixo; memória de anos em casas com encanamentos ruins), perde dezenas a cada vez que se penteia. Perdas mais visíveis, como as lascas de unhas, secreções, excreções. Marcas mais claras que ficam das coisas que se vão do corpo de Lia.

Mas durante o tempo que durou a sua vida, essa transitoriedade de suas partes todas não impediu que Lia seguisse sendo uma, sendo una. Contida e abraçada por si própria. Delimitada. Escorada em ossos que no entanto mudaram também. Cresceram, primeiro, como tudo. Enrijeceram. Depois perderam estrutura, como que se ocaram, esponjosos.

Mas não a ponto de representar problema sério. Coisa mais séria dentro de Lia se partiu antes que a osteoporose pudesse ser problema grave.

*

Uma única vez ela sofreu uma fratura. Ainda criança.

*

Mas a ocasião em que toda a sua materialidade como saco vivo de vísceras e ossos veio à tona, a situação em que Lia de fato se percebeu pessoa, bicho, coisa viva e quebrantável, película pouca que se pode romper de verdade, foi no dia (um fim de tarde, pouco sol, ruído dos periquitos que se recolhiam no abacateiro da vizinha) em que o carro do seu pai a jogou no chão.

Atropelada.

Foi sem querer, é claro. Foi de ré (ele não viu a menina, apesar de a essa altura ela muito pouco ter de pequena) e foi devagar. Lia lembra claramente de ter primeiro sentido como que nas margens do seu campo de visão que o carro começava a se mover, depois estranhado que o carro começasse a se mover (eu estou aqui, Pai, puxa vida…), depois tentado bater com a mão esquerda na lataria para alertar o motorista, isso já depois de o carro ter feito contato com seu corpo.

Lembra de ter dado um passo, passo e meio de perna cruzada para se manter equilibrada enquanto o carro vinha. Vinha lento mas vinha. E não parava. Ela estava ali, puxa vida.

Mas houve um momento, talvez quando uma perna cruzou a outra, em que os passos não deram mais conta e ela caiu na calçada da frente de casa, ralada nas pedras, jogada no chão. A descida da rampa era leve, mas foi o bastante para fazer com que ela caísse um tanto longe do carro, que a essa altura já parava, assustado. Enormes alertas vermelhos redondos de espanto.

Não foi nada, Lia.

Está tudo inteiro. Pele gretada aqui e ali, quase nem saiu sangue. Só sangue pisado, carne magoada.

Lia olha para a traseira do carro com olhos ainda maiores de espanto. E depois ri. Inteirinha ali.

*

Mas cada passo seu nas décadas seguintes foi informado por essa nova vulnerabilidade dos ossos expostos ao baque.

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