Lia – Capítulo 51

Um quarto pequeno. Um “cômodo” pequeno. Mais ou menos bem iluminado, seria, mas o sol lá fora é forte demais, e as frestas de uma persiana de largas lâminas de metal, certamente reaproveitada de algum ambiente comercial, deixam passar toda a luz necessária. As paredes um dia terão sido cor de rosa, hoje tem tons variados entre aquilo e o nada. Tinta a cal. E aquele sol.

Do lado de fora, passarinhos nenhuns. Hoje eles parecem mais comuns. Estranho.

Do lado de fora, carros nenhuns. Naquele tempo. Fim de semana.

Do lado de fora um cachorro late incessante e compassadamente.

Ali dentro, um radinho de pilha está desligado. Acabou de ser desligado. E Lia retorna à tábua e dá mais uma olhada para a menina. Olhos atentos. Todos.

— Então. Filha. Passar roupa é assim. Precisa a tábua, o ferro… e sempre tem que ter cuidado demais com o ferro, porque pode se queimar. Olha aqui o braço da mãe. Tá vendo esses riscos de assim? Tudo queimado de ferro. De eu me distrair. A mãe até se cuida passando. Ó. Nenhum queimado assim na mão. Eu queimo é quando ferro está largado aqui de pezinho e eu vou tentar pegar alguma coisa ali no cesto ou me viro meio sem motivo. Aí relo no ferro e me torro. Besta, né? Mas era isso que eu queria te falar, na verdade. Não de passar roupa. Que no fundo acho que é uma coisa meia besta mesmo. Mas primeiro deixa eu terminar. Precisa tábua, ferro, roupa, claro, e eu uso esses dois potinhos aqui… Essas bisnaguinhas. Uma é de água, pra quando algum vinco não quer sair, que aí você molha e sai. É só molhar. E a outra tem uma gominha bem rala que eu faço, pras camisas do pai. Pelo menos assim pro colarinho. Aí espirra assim que eu sei que você gosta.

A filha franze o rosto ao ganhar mais uma, a enésima, nuvem de gotinhas no rosto. Sorri meio contrafeita. Mas sorri. Seu rosto ali onde está fica listrado pelo sol e pelas réguas de metal.

— O negócio é que isso aqui é que nem tudo. Ou, sei lá, o negócio é que tudo é que nem tudo!Desculpa. Deixa ver se eu me entendo antes de falar.
Ela espirra a goma numa camisa raiada de azul e branco. Cuida da linha dos botões onde aparentemente havia deixado algo para trás. Cabide.

— Porque tem que prestar atenção. Tem que ter calma e ter pressa. Tem que correr devagar pra fazer direito. Mas tem que ser no tempo justo, certinho, e com atenção. Tem que saber onde apertar mais o ferro e onde ir mais de leve, tem que cuidar da temperatura pra não queimar as coisas. Tem que fazer tudo de caso pensado. Pensando. E não adianta querer que as coisas sejam mais fáceis do que elas são. Não adianta querer abrir uma camisa na tábua e passar e torcer pra tudo dar certo. Vai vincar. E o vinco que o ferro faz é pior que o que já vem do cesto, ou do varal. Tem que ajeitar bem na tábua antes de meter o ferro. Alisar com a mão. Deixar tudo certinho pro trabalho começar. Tá vendo. Agora, depois que você trabalhou pra poder trabalhar, agora o trabalho vai ser mais fácil. Facilidade sempre vem de ter trabalhado antes, filha. E aí pode ser gostoso. Se você prestar bastante atenção e não deixar a tua cabeça ficar brigando com o que você está fazendo. Não ficar se revoltando com o que tem que fazer. A cabeça da gente sempre quer outra coisa. Sempre acha que não devia estar ali.
A menina aperta os dentes como vai fazer durante a vida toda. A mãe vê na frente das orelhas o movimento da articulação da mandíbula. Indo e vindo. Desmentindo os olhos abertos e a carinha tranquila. Lia suspira e espirra água. Na camisa.

— Acho que no fundo é uma coisa besta mesmo. Não é nada. Mas era isso que eu queria te dizer se você soubesse entender. É isso que eu acho que vou ficar pra sempre tentando te dizer, filha. Tudo é uma coisa besta. Tudo. Ou quase. Mas se você prestar atenção…

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