Lia – Capítulo 5

Romances podem ser como filmes. Este é como um álbum de fotografias.
Como fotos, os capítulos podem ser lido por si sós. Como álbum, o romance pode ser lido em qualquer ordem: o que lhe dá sentido (nos dois sentidos) é a vida que registra.
Lucília Paula Kappelhoff, a Lia.


Em algum momento entre os anos 10 e os anos 60 do século passado o espírito do ocidente mudou. Não que você de repente saísse, como que para o jardim, e visse que uma flor tinha nascido, ou uma galinha, botado um ovo. A mudança não foi súbita e definida dessa maneira. Mas mudança houve, mesmo assim.

Filosofia, religião, psicologia e mesmo as duas grandes guerras que ocorreram no período terão tido sua parcela de responsabilidade tanto na definição do resultado final do processo quanto no estabelecimento das características iniciais da ênfase que acabou redundando no que não parece exagerado chamar de um desvio, e até considerar um equívoco. Mas nada terá sido mais definitivo e mais incontornável para delinear os rumos desse processo — tanto na medida em que possa ter servido de espelho e possa ainda servir de material de análise, quanto na medida ainda mais importante em que possa ter sido (talvez não inescapavelmente o determinador daquele resultado equivocado, mas certamente) um poderoso catalisador que tornou incontornável essa opção final, depois de percebidas suas raízes — nada mais definitivo, íamos dizendo, do que a canção popular.

Inúmeros pensadores, especialmente os que hoje ligamos às grandes tradições, digamos “religiosas”, ou mais especificamente “sapienciais”, afirmaram de um modo ou de outro a centralidade do amor para a felicidade do ser humano, usando um ou outro vocabulário (e a questão das palavras parece sempre ter tido um papel central neste diagnóstico e, posteriormente, naquele já mencionado “desvio”; basta ver os rumos e descaminhos da tradução bíblica do vocábulo hebraico chesed, ou do grego agape, ou do latim caritas, sem nem mencionarmos o par páli/sânscrito metta/maitri). 

Gautama Buda, Jesus. Seis séculos e meio-mundo de divergência cultural: para uma mesma percepção básica. Passados quase dois milênios, chegamos a John Lennon. All you need is love

E ele continuava tendo razão. O amor é de fato a única coisa de que você precisa, minha filha. A questão (volte àquela discussão sobre o sentido das palavras, logo ali acima) é que esse estranho período logo na metade do século passado tendeu a ir gerando cumulativamente uma leitura dessa necessidade, e desse sentimento… 

Oi?

Não…

Então, uma leitura que nada tinha de original, na medida em que outras tradições, em outros momentos históricos também se deixaram errar por estes campos, também escolheram centrar sua leitura da afirmação da necessidade incontornável do amor numa leitura parcial, enviesada e talvez novamente equivocada. Afinal, precisar de amor não necessariamente quer dizer precisar receber amor. Pode querer dizer precisamente o contrário. (E ousamos suspeitar ter sido esse o sentido em que pensavam tanto Jesus quanto Buda.) 

Afinal, precisar de amor não precisa querer dizer viver entre pessoas capazes de amar, e de me amar. Pode querer dizer a capacidade de viver exatamente nas condições contrárias. De novo, fornecendo o dito amor. Mas, acima de tudo, precisar de amor não necessariamente quer dizer precisar encontrar a única pessoa (e ainda mais a única pessoa pertencente ao gênero biológico que não é o seu) capaz de fornecer e completar esse amor. O dito amor romântico, ou erótico (sem uma necessária, ainda que bem-vinda, conotação sexual), é, e sempre foi, reconhecido como uma das múltiplas formas de amor.

Uma.

Das múltiplas.

De alguma maneira, interpretar a canção de Lennon como um manifesto pela necessidade de encontrar o par ideal seria parecido com o processo que levava certas pessoas a pensar que aqueles adesivos que diziam gentileza gera gentileza quisessem dizer “por favor me trate bem, porque então tenho mais probabilidade de também tratar você direito”. E não exatamente o contrário, simétrico, oposto, complementar. Seja, você, a mudança que quer.

Ternura, sabe.

Amor.

*

Nada disso, mas absolutamente nada disso, passava ou poderia passar pela cabeça de Eulálio naquele dia 17 de março de 1955. Às 16 horas e 11 minutos. Mais ou menos.

Percebeu movimentos no moisés.

Olhou ali dentro, viu o bebê e pela primeira vez, sem pensar, sem nem saber como (nunca teve primos, não tinha irmãos), pegou no colo pela primeira vez uma forma de vida integralmente dependente dele. Uma forma de vida integral e dependente. Dele. Que cheirava diferente, que pesava quase nada. Morna, mole, mansa e sua.

Pegou Lia no colo.

Chorou pela primeira de tantas, tantas vezes depois.

Entendeu.

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