Lia – Capítulo 49

Ela estava sentada no chão. Sobre um cobertor. Cercada de tudo e de todos que mais amava na vida. Presa na sua esfera de cerca de um metro e meio de vida.

Estava quente em Curitiba, um estranho dia atípico (atípico? quem foi que um dia entendeu o clima desta cidade?) de maio. Fim da tarde. Digamos… cinco e quinze. Mais ou menos. O sol entrava pela cortina de renda da cozinha e chegava quase, mas quase mesmo, até o chão de tacos onde estava estendido o cobertor.

O pai abriu a geladeira, mas a garrafa estava vazia. Sem levar a garrafa até a pia, fechou a porta e foi com o copo para a torneira. Teve que voltar para abrir o congelador e pegar a forminha de gelo. Estava quente em Curitiba.

Os dois perceberam o sobressalto da Lia quando ouviu o ruído da forma que, ao ser forçada numa curva dura, liberava os cubos de gelo com um estalo forte. Riram ambos. Lia se manteve fixada na fonte do som.

— Traz aqui pra ela ver.

Ele veio com dois copos. Um, o seu. Outro cheio de cubinhos.

Sentou com as duas no chão. Ajoelhou, na verdade. Ele nunca conseguiu sentar no chão daquele jeito.

O tamanho do fascínio da menina quando viu e ouviu um cubo ser largado de uns dois centímetros de altura dentro do copo d’água foi simplesmente indescritível. Blõp. Décimos de segundo depois, no entanto, uma gotinha da água do copo, projetada pela queda, tinha ido se alojar bem no seu olho esquerdo, que se enroscou fechado com a cara toda, que logo viu chegar também a mão direita.

Os dois riram mais ainda.

Mas Lia estava aprendendo rápido. Mecânica dos fluidos. Termodinâmica. Amor.

O pai meteu dois dedos compridos no copo, desistindo de beber, esquecendo a sede tão absoluta de poucos, tão poucos minutos atrás. Catou de novo o cubo de gelo antes que derretesse demais e soltou de novo no copo. Blõp.

E agora o rostinho de Lia passou de surpreso a pasmado a concentrado e divertido. Era assim, então…

E o pai, com os dedos pingando, espirrou o resto dessa água na filha, que de novo pareceu querer fazer do rosto um fuxico. Sem no entanto deixar de se divertir. Com cuidado, o pai pegou um outro cubo de gelo do segundo copo e o estendeu para a Lia. De onde ela estava, ali embaixo, o cubo ficou exatamente na frente da janela, do sol que entrava, e reluziu e rebrilhou de maneiras totalmente novas, quase inconcebíveis para os dois adultos amortecidos diante da realidade das coisas todas deste mundo. Diante do incrível fato de que a água se faz gelo, cristal, e se prisma em prisma novo, contra a luz. E é fria. A água dura ali dentro é gelada, Lia.

E quando o gelo ia chegando perto dela, a menina já sentia o frio, além do brilho. E não tirava os olhos daquilo. Nos dois adultos, o mais feito silêncio. Talvez seja para isso que sirvam as lias pequenas. Para que eles também possam compartir alguma coisa desse pasmo. Desse interesse.

Concentração.

Ela esticou o bracinho gordo e quis pegar o cubo. Na mesmíssima hora o pai num gesto rápido tocou com a pedra o nariz da filhinha, que só não cai para trás porque a mãe estava atenta.

O gelo é frio, é molhado e se move.

Tome nota.

Segunda tentativa. O pai agora quer de fato que ela pegue o cubo da mão dele, e com cuidado o estende para a filha, já sentindo os dedos amortecidos pelo contato firme com o frio. A filha, quente, morna, mole, mansa, estende a mão redonda onde agora ele pousa o contato da pedra. Um presente.

Aprenda, filha. Aprenda.

Não veja apenas: sinta.

É claro que o cubo caiu quando Lia tentou segurar. É claro. O gelo é liso.

Ficou ali na coberta entre as pernas roliças, diante do tronco tão reto atrás do qual estava a palma aberta da mãe, só para garantir, meio palmo distante; diante do qual se estendiam os dedos vermelhos do pai. No chão na frente da janela. Sob o sorriso encantado de Lia.

Estava quente.

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