Lia – Capítulo 46

Lia nem conhece a pessoa. Nem sabe que enquanto ela dobra uma esquina e começa a subir a quadra ele acaba de sair de seu campo de visão, seguindo pela rua paralela à que ela abandona, pouco mais de cem metros à frente dela. É como se estivessem brincando de gato e rato na quadra. Mas Lia não sabe disso, não sabe quem é a pessoa, e não vai ver nem sombra da pessoa quando chegar ao topo da curta ladeira que sobe.

Otacílio já estará de volta ao seu prédio.

Otacílio Viana Reis. Cinquenta e oito. Prostético. Ligeiro desalinhamento do quadril, que faz com que caminhe com o cinto num ângulo de uns quinze graus em relação à rua. Mão direita mais perto da calçada que a esquerda. Mas não o impede de andar bem rápido.

Otacílio tem um gato. Nove. Melquisedeque. Hoje moram só os dois no apartamento 75 do edifício Sumaúma. Rua Major Lobo Reis, 673.

Melquisedeque esteve o tempo todo que durou esta cena sentado à janela do apartamento. Com toda possibilidade de acompanhar as andanças, as idas e vindas de Otacílio e, quem sabe, da própria Lia. Mas preferiu ficar olhando para o outro lado. Nem Melquisedeque nem Otacílio conhecem Lia.

Ou o dono do cachorro, do putativo cachorro… O cachorro do dono de um (putativo) cachorro que deixou amostras de sua produção fecal bem na esquina da quadra de Otacílio. Mas bem na esquina. Num lugar em que parecia simplesmente impossível que alguém não viesse a pisar naquilo daqui a pouco. Tanto alguém que acabasse de atravessar a rua quanto, especialmente, pelo lugar em que o troço ficou, alguém que estivesse terminando de subir a ladeira. Mas que filha-da-putagem.

O próprio Otacílio só não esbodegou o sapato todo por sorte. Um milissegundo de atenção e conseguiu desviar o passo. Até pisou esquisito. Ou mais esquisito do que de costume. Mas se salvou de ter que esfregar merda da sola do mocassim. Que filha-da-putagem. Otacílio seguiu caminhando e pensando, com certa raiva, na cachorrice daquele possível morador da vizinhança. Bem na esquina. Custava catar a caca? Não pensa nos outros, Isso que é. Alguém certamente, talvez neste exato momento já estivesse acontecendo, alguém ia pisar naquilo e ter o finzinho do dia azedado.

Otacílio olha para trás.

Ninguém na esquina. Ainda.

Passa pela portaria, sobe os dois andares de escada, já determinado. É uma corrida contra o tempo Otacílio. Pode ser tudo em vão. Talvez esses segundos todos de discussão interna, de intensa batalha entre preguiça, racionalização (não é problema meu) e vontade de querer ajudar alguém (mas quem? e quando?) já tenham custado muito. Já tenha custado tudo. Agora é correr, Otacílio, porque preguiçoso tem que trabalhar na pressa.

Ele entra em casa, corre com o seu passo estranho até o puxa-saco na lavanderia, arranca dali uma sacolinha de mercado embolada e volta para a porta que nem se deu ao trabalho de fechar. Desce as escadas quase saltitando, suor pipocando por baixo do bigode. Ao sair pelo portão do prédio, de longe, uns trinta metros, com o pouco de luz que o dia ainda dá conta de fornecer, ele verifica que a merda ainda está lá. O que é ruim. É uma bosta. Rá. Mas é bom, porque ninguém pisou ainda. Otacílio reflete momentaneamente sobre o quanto é estranho estar feliz por ver um cocô em sua prístina forma original na calçada. Prístina… Rá.

Há um cesto de lixo da prefeitura bem na frente do portão do Sumaúma. Que se fecha com um estalido metálico quando Otacílio volta, segundos depois de ter deixado no lixo a sacola amarrada e cheia de cocô de cão. Lia nem sabe quem é Otacílio. Nem vai saber que um dia ele existiu. Mas ao terminar de subir a ladeira, coisa de 40 segundos depois do clique do portão, ela pisa exatamente naquele lugar. E segue em frente.

Melquisedeque desce da janela sem olhar para aquele lado.

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