Lia – Capítulo 44

Eles não estavam ali para ver a pior parte. Não ficaram. Os primeiros ruídos dos homens que chegavam mais perto, dos homens que pularam o muro, dos homens que puxaram sua arma… os primeiros ruídos já os fizeram sair em disparada. Todos. Não viram a morte. Nunca entenderiam.

*

Lia escovando os dentes. Olhos ainda achatados de sono. Uma mão na parede, ao lado do espelho, cabeça baixa sobre a pia. Camisola branca. Descalça no azulejo verde.

Ouviu nitidamente o estrondo (não era preciso muito esforço para se ouvir nitidamente o estrondo) dos homens que tiravam o equipamento da caçamba da caminhonete estacionada do outro lado da rua. Dois. Conversando alto, àquela hora, sexta-feira de feriado… Começo do dia. Lia tinha tanto por fazer. Tanta coisa acumulada em casa. A vida apertando. Apertada.

A vida.

Intrigada, foi até a janela ainda sem cuspir, escova pendurada num canto da boca. Os homens estavam atravessando a rua e vindo para o lado do seu prédio. De onde estava, ela podia ver o portão do prédio; de onde estava, pôde ver que os homens passaram pelo portão do prédio. E logo depois de passarem ela pôde também ouvir o barulho das ferramentas largadas no chão. Mas ali do lado só tem um terreno baldio…?

Lia volta até a pia.

Enxágua e enxuga a boca. Estende bem as pálpebras mantendo os olhos fechados e erguendo as sobrancelhas. Lava o rosto pela segunda vez e volta para o quarto, para pegar os chinelos.

Da janela da sala consegue ver os sujeitos pulando o muro do terreno baldio. Um deles já lá dentro, primeiro, e o outro passando as ferramentas. Vem depois. Consegue ver que os dois se dirigem ao coqueiro, ao pé de coquinho, ao jerivá. Sozinho no terreno, no meio de um mato ralo, umas plantas estranhas, nanicas, e tanta borboleta branca.

Um deles, o segundo, pula o muro mas fica por ali, depois de ter passado para o outro o que interessava. Fica fumando apoiado no murinho baixo. O outro liga a máquina.

Eles vão cortar o jerivá.

Lia passa as duas mãos pelo cabelo e pensa, por um momento pensa, não sabe por quê, mas pensa que não sabe se devia gritar. Põe uma mão na janela.

Nesses poucos segundos o primeiro dos dois já fez dois grandes talhos no tronco, em formato de V. A árvore já estava morta, sua morte estava decretada. Uma coisa que estava viva enquanto Lia cuspia e esfregava o sono dos olhos já estava com a morte decretada, por mais que restasse de pé. Por enquanto…

Lia inútil. Com a mão na janela e a boca entreaberta.

E ficava ainda mais irritada por lembrar, do meio do nada, que palmeira não tem tronco, tem estipe. E aquela ali, agora… aquele estipe estava talhado em V. Recortado apontando para a queda.

Tirou a mão do vidro e deixou a cortina voltar. Dois passos atrás, de costas para a janela, ouviu somente um jato a mais do ruído do motor. Certo silêncio depois. E quando ela decide voltar ao vidro e ver, quando se vira de novo para aquele lado, ouve a planta cortar o ar num arco seco, trinchar o campo de borboletas. Cair. Morta no chão. No chão do terreno que se inclina para longe do muro, o que fez com que a árvore tivesse que cair por uma fração de tempo a mais, tivesse que passar por uma fração extra de humilhação antes de se estender no chão.

Com um estrondo, baque seco, pancada só.

Com um estrondo que, literalmente, faz o piso do piso do prédio em que Lia morava tremer. Oscilar uma só vez. Registrar como agulha num papel de cardiograma aquele pico, aquele V invertido uma vez só.

Lia, de boca ainda aberta, não queria voltar à janela.

Mas de quê? O vazio da árvore, ao contrário da árvore, era permanente. Estaria ali quando ela passasse depois…

Quando passasse.

*

Quando os passarinhos passaram ali outra vez voaram por um espaço novo. Deram uma, duas voltas. Pousaram para comer no chão os coquinhos amarelos. Cercados de borboletas brancas.

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