Lia – Capítulo 37

Ela estava já do lado de dentro. Esperava a mola trazer o portão de volta; aguardava ouvir o clique da fechadura batendo. Tinha o pé já no degrau. Mas decidiu voltar.

Um pequeno suspiro.

Decidiu voltar.

Olhou de novo para os dois lados, era tarde, melhor se precaver. O cachorro, no meio disso, não entendia se devia se animar com a ideia de um passeio mais longo, ou se reclamava e sentava em protesto, preguiçoso. Era hora de dormir, dona Lia. Porque você está voltando pra rua…

Não necessariamente a rua, no entanto. Era a calçada. Logo na frente do portão do prédio, por onde eles acabavam de passar. Era ali que estava o foco do interesse de Lia. O motivo de ela voltar.

Ela se agacha e olha com cuidado para o passarinho.

Pode ter caído do ninho. Pode ter nascido morto. Pode ter caído, já morto, do ninho.

Lia olha para cima, mas o poste de luz está entrelaçado com os galhos da árvore, que ficam recortados em sombra. Difícil enxergar algum ninho. Saber se a mãe está ali. Talvez olhando para ela. Irmã.

Não quer tocar no corpo morto. Algumas formigas já estão andando por sobre a carcaça. Parte das penas do tórax (pássaro tem tórax?) já caiu. Ou essas penas nunca chegaram a nascer.. Algo rosa aparece ali. Um órgão?

A pele do bebê.

Cheia de formigas.

O pescocinho se estende tenso, sem segurar a cabeça desproporcionalmente grande, onde um bico ainda mais destoante parece pesar mais do que todo o resto do animal.

Tem uma folha caída logo ao lado. Talvez?

Lia tenta usar a folha como pá, como alavanca. Pensa em segurar de um lado, colocar a outra extremidade sob o cadáver e erguê-lo dali. Até a grama.

Mas a folha é mole. E se dobra.

A folha não aguenta a tarefa.

Só que na primeira tentativa o passarinho roda, gira 180 graus, resta de bruços. E agora Lia vê os olhos imensos, fechados, cobertos pelo que parece uma película arroxeada. Ave morta. Bicho cego.

Ela empurra de novo. Outra pirueta.

E de repente percebe o quanto o pescoço que parecia distendido e duro se comporta como músculo que dorme, flexível. Empurra o corpo e a cabeça gira logo depois. Com a resultante das forças da gravidade e da tensão dos tendões fazendo com que o cadáver se comporte como corpo vivo que se ajeita, se acomoda, se enrola na cama.

Lia fecha os olhos por um segundo.

Precisa rolar a carcaça talvez mais quatro ou cinco vezes para chegar à grama. Faz pequenas pausas entre cada tentativa, para afastar da mente a ideia de que o corpo está vivo, rolando, satisfeito de olhos fechados.

As formigas começam a subir pela folha e pelos dedos de Lia também.

O cachorro nem percebeu o que está acontecendo. Sentado. A ponta da coleira está solta na calçada.

O pássaro vira de novo os olhos foscos para Lia. O pescoço. Os olhos.

Até chegar à grama onde se mascara marrom contra o verde baço das folhas de começo de outono. Onde será digerido pelo mundo e tornado terra. Um tanto mais oculto. Enterrado sobre a grama.

Longe dos olhos da menina que amanhã vai esperar o ônibus da escola exatamente aqui.

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