Lia – Capítulo 34

De 10h27m11s até 10h27m17s. Uma das três mulheres está parada na beira da calçada, esperando o sinal fechar para poder atravessar uma rua de movimento não terrível, mas constante. Isso em tempos em que ninguém pensava em atravessar só na faixa.

Ela está bem no meio da quadra. Quem a visse de longe não poderia imaginar o que lhe ia pela cabeça. Nem nós podemos, hoje, anos depois.

Tinha uma expressão ausente. A expressão de alguém que está apenas esperando para atravessar a rua. Mais uma rua. Nada de especial. Mas o rosto da mulher se crispa depois do espanto, tensiona-se enquanto ela olha para a direita depois de ouvir o ruído gritante dos freios do carro. Logo à frente.

Um pouco de fumaça chegou a subir dos pneus e esconder o que eles causaram e por onde passavam. Algum pedaço do carro se soltou e rodava pelo asfalto, embolado com a cachorrinha que saía puxando de uma pata.

A mulher que esperava para atravessar a rua acabava de passar pela cachorrinha, que ficou sabendo chamar-se Geleia. Carinho na cabeça. Conversa com a dona. Agora a Geleia estava correndo desesperada para longe do carro que tinha passado por cima de alguma parte sua.

E que seguia no trânsito. Impossível parar.

De 10h27m14s até 10h27m23s. Uma das três mulheres ouve o ruído, quase sente o baque do carro contra a sua cachorrinha. Seu rosto imediatamente se transtorna, se derrete e se escancara enquanto, tonta, ela busca olhar em volta para ver se a Geleia estava a salvo. Reflexo curioso. Ela não olha primeiro para o ponto do impacto, tão óbvio, poucos metros à sua frente. Mas tenta se iludir procurando pelo bicho em torno de si.

Desiste, leva as mãos à cabeça e, neste mesmo momento, começa a correr atrás da cachorra que por sorte não segue o rumo da rua de trânsito mais pesado mas decide descer a transversal tranquila logo à frente. A mulher é mais lenta que o cão. Corre entre lágrimas, pesa-lhe o peito, não tem fôlego.

Quando chega à esquina, a Geleia já está quase uma quadra à frente, correndo torta e ganindo perdida, sem nem olhar para trás. E é chegando à esquina que ela se dá conta, finalmente, de seu outro reflexo estranho no momento de pânico. E para.

E olha para trás desconsolada, ouvindo ainda os gritos da cachorra mas estendendo as mãos para o ponto de onde acabava de sair correndo, querendo ir buscar o que tinha ficado para trás.

Dividida. Partida.

De 10h27m21s até 10h27s31. Uma das três mulheres não entende absolutamente nada do que acontece ali.

Ouve o freio, estrídulo: o estrondo. Sente que a abandonam. Outro tranco. Ouve a voz gritando alto, cada vez mais longe. Sente-se só. No meio da calçada. Amarrada ao assento. Virada de costas para a cena. Sem poder nem ver a mãe que se afasta acelerada.

A única pessoa à sua frente, no limitado campo de visão que o toldo do carrinho de bebê lhe proporciona, é a menina parada no meio-fio, de olhos esbugalhados, ensaiando uns passos na sua direção enquanto mantém os olhos, não nela, mas num ponto mais distante, uma moça que mira por sobre o carrinho e abana a mão direita.

Ela não sabe quem é ela.

Já ela… ela não sabe quem são elas.

E ela, por sua vez, não sabe quem é ela.

Mas a primeira das mulheres põe as mãos em volta da boca e, ainda olhando para a outra, grita apenas.

— Vai. Vai que eu estou com ela!

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