Lia – Capítulo 33

A xícara era velha. Nem xícara era, aquela xícara. Caneca. Uma coisa grossa e pesada, certamente mal acabada desde sempre. Desde fabricada. Mas era a xícara da Lia já fazia bastante tempo. Desde que ganhou de presente. E o fato de ter sido presente, e de ter sido presente dele, era certamente parte da relação que ela criou com aquele objeto cerâmico simples, feio, tosco, branco e lascado.

A xícara tinha uma lasca grande que vinha desde a borda até perto da base, partindo de um trincado feito um dia por um dente, onde agora o barro claro que jazia por sob a camada branca que afinal era mero sepulcro caiado…

…onde agora o barro claro aparecia com a textura original. Milímetros de terra à vista. Uma bobagem. Mera lasca. Mas dali saía aquela linha fina, um cabelo, lápis novo, que riscava o branco até quase o fundo, num trajeto corológico, torto, perfeito. A xícara de Lia era de Lia também porque tinha o seu defeito. O “seu” defeito.

Estava em cima da pia, quase cheia de água quente. Apenas água.

O sol que entrava pela cortininha fina, sempre renda, deixava a água bonita ali empoçada, contida. Sol de fim de tarde, dia de inverno, luz preguiçosa, quase densa de tão lenta. A chaleira tinha voltado para o fogão, para manter quente o resto da água, que naquela temperatura ia esfriar em questão de segundos.

Lia levantou a xícara, sempre pensando que um dia aquele risco, que de fato triscava a área da alça, da asa, do braço da xícara, um dia ia representar a quebra, e com ela a queda de xícara e conteúdo. Sobre tudo. Aquele risco, da queda, era também ele um acréscimo de incerteza, e com isso de prazer, ao pequeno ritual da água quente sobre as folhas frescas. Cada dia podia ser o último. Cada dia era um encontro novo. E só um.

Lia virou a água na pia, e a xícara antes meio vazia agora ficou cheia inteira do ar quente que precisava estar ali. E que era mantido quente pelas paredes grossas da xícara, aquecidas.

Dentro da xícara, então, entraram as folhas. Cheirosas mesmo agora.

A mão de Lia foi ao fogão pegar de novo a água, enquanto seus olhos ficavam nas folhas verdes sob a luz dourada, enquanto sua cabeça tentava não ir a lugar nenhum e apenas prestar atenção. Enquanto Lia tentava estar ali com o ar quente da xícara.

A água caiu quente sobre as folhas, que de pronto reagiram, gritaram e cederam seu espírito em óleo. Gritaram e se abriram em espírito, alento. Gritaram e dormiram, hortelãs.

O vapor que subiu da xícara teria feito Lia sorrir.

Devia ter feito Lia sorrir.

Mas ela não estava tendo tanto sucesso em se manter ali atenta. Precisou fechar os olhos, segurar a xícara com as duas mãos, tapando a fresta e eliminando o risco da asa partida. Precisou sentir o cheiro do chá, sentir na pele o calor da cerâmica, sentir na cara o ralo calor parco do sol que ainda entrava. Precisou ouvir ao longe as maritacas que se recolhiam. E o rádio que tocava uma música horrenda em algum outro andar.

O vapor agora era cheiro, umidade e calor no rosto de Lia.

Abriu os olhos para ver a bebida.

Estava pronta.

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