Lia – Capítulo 32

Foi. Foi na mesa do jantar, ali com todo mundo junto, da firma e tal. Claro que foi tenso, né? Uma coisa desse tipo não é tranquila nunca pra ninguém, afinal de contas. Foi. Ele simplesmente começou a dizer tudo que estava lá preso na garganta dele desde sei lá eu quando. Assim, aquele tipo de coisa que depois que você começa nem tem como falar mesmo. Ele estava calmo. Estava bem calmo até. Assim, contido, né. Organizado. Ele não se alterou, não subiu o tom de voz. Não muito pelo menos. Não que desse pra chamar a atenção. Foi. Foi pesado. Mas ele ficou ali contido, com as duas mãos abertas em cima da mesa que depois que ele tirou dava pra ver a umidade e o amassado da toalha. De ele ter suado e ficado ali se contendo pra ficar contido daquele jeito. É. E pra dizer tudo que ele tinha que dizer. Não. Acho que ninguém sabia. Acho que foi surpresa pra todo mundo. Pelo menos assim a profundidade daquilo. E de quanto tempo atrás que vinha. Ninguém imaginava antes. Mas foi dessas coisas mesmo. Que depois que ele começou ele viu que não tinha como não ir até o fim. E aí foi. E ele disse um monte de umas verdades lá pra Lia. Umas coisas pesadas mesmo. Complicadas. É bem verdade. Mas que ele achou que tinha que dizer. Não sei. Não sei se tem hora certa pra esse tipo de coisa. Às vezes de esperar a hora certa é que você nunca fala mesmo. É. Foi. Então eu acho que, sei lá. Ele sentiu que era a hora de expor aquilo tudo ali pra ela. Bem ali na mesa com todo mundo. Antes da sobremesa mesmo. E aí que ela me chocou. Não ele. Eu acho que entendo essa necessidade dele. Era a verdade dele lá naquela hora. E eu acho importante. Mas ela agir daquele jeito? Foi. Foi bem que nem te contaram mesmo. Ela não se dignou nem a abrir a boca. A Lia. Ficou ouvindo com uma expressão super tensa, super enfurecida, descontrolada mesmo. Não. Nem foi isso. Ela ficou ali paradinha ouvindo. Não interrompeu nem nada. Mas a tensão na cara dela estava na cara. E aí? Como “e aí”. Não teve “e aí”. Ela levantou e saiu da mesa. A gente só ouviu o carro uns minutos depois. Achei muito baixo. Ofensivo mesmo!

*

Olha, tem dias que você aprende umas coisas sobre as pessoas nas horas que você menos esperava. Essa coisa da Dona Lucília, por exemplo, ontem, me pegou completamente desprevenida. E eu não estou falando nem das coisas que eles disseram, de querer saber o que é verdade ou não do meio daquilo tudo. No fundo nem me interessa. Ou no raso, na verdade, isso é coisa lá deles, que não me diz respeito mesmo, se bem que se é pra eu te ser bem sincera eu hei de reconhecer que acho que nada daquilo faz o menor sentido com a Dona Lucília que a gente conhece, por mais que a gente conheça pouco. E ele estava bebinho, tinha chegado já com cheiro de cerveja, antes até das pessoas começarem a tomar alguma coisa juntas ali. Não que isso tenha decidido alguma coisa. Na minha modesta eu acho que ele deve de ter saído de casa decidido, que era ali, que era naquele dia que ele ia descascar a Dona Lucília daquele jeito, com aquele monte de baboseira de bêbado, aquele monte de cascata. Ele estava uma pilha, isso dava pra gente ver, batendo com a mão na mesa enquanto falava. Enquanto ia soltando aquele monte de umas coisas ofensivas pra cima da Dona Lucília, que, ela, enquanto isso, ficava ali na cabeceira da mesa, no lugar de honra dela, simplesmente fazendo que sim com a cabeça e, bem de vez em quando, abrindo um pouco mais os olhos de surpresa com aquilo tudo. Que deve de ter sido uma surpresa mesmo. Vindo dele. Justo dele. Mas aí que ela mostrou quem que era superior, e aí que ela me ensinou umas coisas. Ela podia ter descido o sarrafo no otário. Podia ter se apoiado nas pessoas que estavam ali e que de certeza iam ficar do lado dela. Mas não quis estragar a festa de ninguém mais do que o otário do seu Alencar tinha estragado. Deve de ter custado um esforço desgramado… mas ela levantou que nem uma dama de cinema dos anos 40, pegou a bolsinha em cima do balcão e saiu sem nem olhar pra trás. Uma dignidade… Isso que foi!

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