Lia – Capítulo 31

Uns poucos cabelos brancos, três ou quatro, difíceis de se discernir. Umas tantas linhas fracas, sob os olhos. Rugas. Ainda uma menina.

Lia mais tarde, Lia aos quarenta, aos cinquenta, Lia que nunca chegaria aos setenta, podia até rir da ideia de que Lia aos trinta estava envelhecendo, teria envelhecido. Era uma menina. Olhos limpos. Cheia de ideias, de vontades, cheia da vontade de ter ideias.

Ela estava sozinha. Eram sete e quarenta e três. Não tinha contado a quem não soubesse, não tinha atendido o telefone. Queria estar sozinha. Sala escura. Copo d’água.

Alguma coisa nela dizia que era esse o símbolo, que seria esse o aprendizado imediato, e necessário. Estar sozinha numa sala escura, copo d’água, consciente do tempo passado, do tempo que passa, da passagem. Nisso ela talvez, e quase certamente, estava ainda errada. E tudo que aconteceu no dia seguinte, exatamente no dia seguinte àquele, acabou provando precisamente o quanto estava errada. Estava no mínimo dez anos adiantada.

Mas ali, figura clara contra fundo escuro, copo d’água, recorte de pessoa sobre o mundo duro dentro e fora daquele apartamento, silhueta ao contrário, do avesso, Lia pensava na vida, e já sabia desde tão cedo que pensar na vida era sempre pensar na morte. E vice-versa. Pensava no que tinha visto e no que veria. E quanto?

Lia, que nunca chegaria aos setenta.

Lia, que ali ainda nem tinha ideia do que podia representar uma vida de setenta, oitenta, de noventa anos. Lia, mal aos trinta.

Não doía.

Não se engane. Não era esse o espírito. Não é essa a nossa Lia. Não era depressão, não era deprimente. Era aquele copo d’água, já algo bebido. Ainda bem cheio. Era claro, era estável, imóvel e transparente, até que você tocasse. Até que levantasse.

Era limpo, inodoro, insípido, mas melhor que tantos sabores. Era um gosto.

Era a ilusão de que tinha aprendido tanta coisa. Era a certeza de que tinha aprendido tanto. Era uma sensação de aceleração, que ainda nem roçava o que viria a ser: era pressa. Ela correu dos vinte aos trinta. Chegou bem, com fôlego, somente um tanto espantada com aquela mudança de número. Mas era um objetivo.

A velocidade, agora, começava contudo a chamar mais atenção que o caminho. Ela ia se dando conta de que os próximos dez anos podia definir tudo, podiam ser maiores que os trinta, mas ao mesmo tempo não iam deixar a mesma marca. Iam passar com o passo leve de quem leva menos tempo na passagem. Triscando. Como aquele par de garras agudas riscando o solo do oceano.

Outro gole do copo meio cheio.

Mas ela tem um sorriso. Ela não está triste. Ela quis ficar sozinha, até aqui. E o telefone está ali. Bastava ligar. E amanhã, ela não sabe… mas vai ser tanta coisa, e tão veloz…

Por enquanto era só ela. Era Lia em paz, copo d’água que já precisa encher de novo.

Era Lia sozinha, aos trinta, que passava de novo a língua pelo lábio inferior e a deixava descansar um momento, como sempre, sobre o dente que não se ajustava bem aos outros. Era Lia que piscava um tanto mais demoradamente do que seria necessário para os olhos. Para continuar a ver.

Era Lia cansada, com sono.

Dorme, querida.

Dorme. Ainda tem mais.

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