Lia – Capítulo 28

Foi na Califórnia. Numa daquelas estradas longas, todas retas, irretocáveis. Sul, rumo norte. São Francisco.

O sol que já ia descendo projetava a sombra da carroceria inteira sempre uns metros à frente do caminhão branco, que não desistia. Faróis ainda apagados, contra a luz, afinal, o que nele brilhava era especialmente a grade alta do radiador, prateada, paralamas e capô. O cano de escape vertical, ao lado da cabine, insistia também em de alguma maneira refletir uma luz que do sol só podia estar chegando já por caminhos entortados, refletidos, refratados.

O caminhão seguia firme, inalterável, arrastando atrás de si duas carretas independentes. Romeu e Julieta, como se dizia no Brasil. Um caminhão feito trem, puxando duas cargas articuladas que, a quem visse de frente a aproximação do conjunto todo branco, mal se faziam insinuar. Dada, claro, a ausência de curvas. A cara do caminhão era a fachada apenas, reta, irretocada.

Apenas se visto do alto era que se poderia deduzir sua composição. Aquelas duas carretas atadas uma à outra, gradeadas, cheias as duas de sua carga também branca. Idêntica. Quase mais brancas que a capota que de cima também se veria. Quase mais brancas porque de um branco mais vivo, mais real. Fraturado mas num dado sentido mais inteiro, e íntegro.

Contra o sol aquele branco outro reluzia mais que a cabine, por ter a seu favor aquele contra-sol, que ainda podia atingi-lo cheio, direto, irretocante. E que brilhava contra o gradeado das laterais e dos fundos de cada carreta, fazendo com o que o metal prateado, menos claro que o da grade dianteira, conseguisse se arriscar em relances mais limpos, mais precisos, mais cortantes do que seria de se esperar, do prosaísmo de matéria e ocasião.
E conteúdo.

O que enchia afinal as duas carretas eram cargas de topo piramidal, ainda que decerto entupindo quadradas os cantos mais fundos de cada baú gradeado com suas formas redondas também certamente achatadas pelo próprio peso. Eram frágeis as, ainda que vívidas, conquanto viçosas não fossem, cebolas, cebolas, cebolas.

Cada uma uma perfeita imitação da abóbada de uma igreja ortodoxa russa, em tudo e por tudo idênticas ao ornamento a não ser pela cor, ou sua ausência em termos visíveis (presença plena em espectro, claro), clara. Outra vez. Juntas, aglomeradas naquelas estranhas pirâmides irmãs, elas singravam a estrada reta, irretocáveis, algo altivas, hieráticas, brilhantes ao sol que as atingia ainda em cheio. Mas essa plenitude algo estática em meio ao movimento constante do veículo era desmentida pelo vento que desse mesmo movimento procedia. Brisa tensa, aragem constante. Porque o ar que passava pelas cebolas arrancava delas o que nelas já cebola mais não fosse. Casca. Pele. Camada. Cascas.

Brancas.

E o caminhão seguia sua rota deixando atrás de si uma espécie de névoa, ou de neve, formada apelas por esquírolas de cebolas ao vento, como pétalas. Vibrando no ar, volucres, tocadas pelas espirais do arrasto da cabine contra o ar tentava detê-la. Caindo no chão da estrada, acostamento, ou parecendo nunca mais voltar à terra, em certos casos, encantadas.

As cascas de cebolas bem branquinhas.

No vento.

Voando.

E atrás do caminhão, num carro vermelho alugado, conversível, com um lenço azul prendendo o cabelo fino que também queria voar dos seus ombros… atrás das pétalas brancas vinha Lia. Feliz.

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