Lia – Capítulo 26

Bem no fundo, atrás de todos, uma figura solitária. Vista daqui, parece ser de um homem. Ou talvez seja apenas expectativa, um padrão, quase preconceito. Quem, afinal, no meio daquilo tudo, estaria sozinho e afastado dos outros… quem senão um homem? Ali, debaixo de uma árvore também ela algo isolada. Distanciada.

Mais à frente, as pessoas são inumeráveis. I-nu-me-rá-veis. Verdadeiro mar de gente, ainda que em espaço reduzido. Lago. Verdadeiro lago de gente, que seja.

E todos homens, esses. Quanto a isso não há dúvida.

Compactados, comprimidos mesmo, querendo todos estar num mesmo lugar e, diante da impossibilidade de que um só lugar comporte a todos, buscando cada um seu lugar possível. Como lobos. Como lobos que ao caçar buscam cada um a melhor posição em torno da presa, dando a quem vê de longe a impressão de uma inteligência coletiva. Mundo cão. E embora estejam todos apertados no quase-mesmo espaço, os lobos todos (ou homens, digamos), estão na verdade à cata cada um de sua melhor possibilidade individual.

O que eles querem tanto enxergar está em cima de um tanque. Há dois tanques, na verdade, um mais ao fundo, ele mesmo tapado pela concentração de outros homens em torno e até por cima. Quase ocultado. O outro é esse mais à frente, nitidamente perceptível em toda a sua dissonância, em toda a sua estranheza e estranha naturalidade. Entre todas as coisas ali naquele relativo descampado, os dois tanques, e especialmente este, o que ficava mais à frente, talvez fossem as duas coisas efetivamente à vontade.

Eles e a árvore.

O tanque principal tem na torre um número oito. Na torre de onde sai o canhão, gigante, interminável, que corta a cena toda como uma linha que separasse o fundo da frente, os vivos das mortes, os livres dos nós. A torre giratória e o canhão ameaçador estão ainda mais à vontade do que o tanque como um todo. Dominam. Comandam. Mandam em tudo e todos ali. Pesadas, móveis mais lentas, ativas mas frias, pesadas duas coisas.

Mas não é para elas que olham os homens. Nem os do lago de humanidade comprimida, nem a sombra sozinha sob a sombra. O que eles buscam ver está equilibrado sobre ela. Precariamente. Um homem com uma roupa clara e frouxa, única figura que ali parece se destacar da horizontalidade quase agressiva dos elementos da cena. Ele, de pé sobre o tanque, e a sombra sob a sombra, claro. Há sempre essa sombra.

Ele ali, de pé, tem um braço erguido, que lhe oculta quase inteira a cabeça. A mão que acaba esse braço está virada para trás num ângulo que não pode não ser incômodo, forçado. E sobre ela repousa, com a maior das maiores levezas, a curva lombar da mulher. Bailarina. Acrobata. Tem argolas enroscadas nas mãos e nos pés. Malabares. Está toda recurvada em arco pleno. Tensa, tensionada, mas leve, largada. Deposta como capa ao vento, ancorada, volante na mão do parceiro.

Lia se afastou dois passos da foto. Vijetha Kumar, 1945. Dia de diversão no front russo.

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