Lia – Capítulo 23

Lia nunca foi de dormir sem roupa. De menina, era camisola e meia comprida. Ou pijama, se as meias não dessem mais conta do frio. E calça por dentro das meias. E paletó por dentro da calça. Fazia frio na vida de Lia menina.

Mais velha, saída da casa dos pais, percebeu que se sentia melhor com menos. Talvez os edredons de sua vida de adulta fossem melhores que a soma de cobertores Parahyba empilhados na infância. Talvez seu termômetro interno tenha mudado. Ou quem sabe as duas coisas.

Adulta, Lia dormia sempre de camiseta e calcinha. Nada mais. Inverno ou verão.

Mas Lia nunca foi de dormir sem roupa.

Só que naquele verão, o verão de se dormir sozinha, verão de cama vazia, de espaço fresco no lençol ao lado, Lia lembra que em algumas noites foi pra cama sem a camiseta. Foi pra cama sem nada, de todo. E não saberia dizer a razão. Não saberia explicitar uma conexão. Mas o fato é que estar sozinha na cama grande de alguma maneira parecia fazer mais sentido se estivesse nua. Ou estar nua na cama imensa parecia deixar menos lógico o fato de ela agora estar ali sozinha. Lia não sabia. Nunca soube.

E devem ter sido umas duas, três noites no máximo. E olha lá.

Foi um verão de calor de verdade. Muito, mas muito acima de qualquer média. De dias sufocantes e de noites abafadas. Um tempo sem vento, sem folga, sem alívio e sem alento. Um bafo seco e quente, e só.

No desespero de tentar achar algum conforto, Lia abria a janela do quarto. O andar era alto, num prédio isolado. Não fazia mal. Mal não havia. Mas o ar parado do mundo não andava pelo quarto de Lia. Não circulava. E quem rodava e rolava na cama gigante, sozinha, era Lia sem roupa. Pelada. Cansada e triste. Perdida. Desencantada.

No desespero de tentar encontrar algum conforto, decidiu então abrir também a porta da sacada pequena que, diante da porta do quarto, formava um ângulo reto com a janela escancarada e, dessa forma, gerava algum tipo de corrente de ar. E assim exposta, assim aberta, Lia dormiu pela primeira vez descoberta, sem roupa. No máximo duas, três noites.

E olha lá: numa delas, digamos que a segunda dessas três, talvez três, ela acorda no meio da madrugada. No meio cravado, perfeito, da noite mais funda, mais finda, mais negra e calada.

Silêncio.

Escuridão.

Lia foi ao banheiro. Sem acender as luzes, fez xixi, lavou as mãos, enxaguou o rosto, bebeu água da torneira. Usou a toalha na cara, primeiro sem esfregar, deixando sua água entrar nas fibras do tecido, sentindo o cheiro fresco e a textura macia. Depois secou bem rosto e mãos e, passo pesado, foi voltando para o quarto, para a cama boquiaberta. Amarrotadas ambas.

Silêncio.

Escuridão.

Talvez tenha sido o vento. Um primeiro afago, todo raro, de um primeiro vento naquele verão. Alguma coisa Lia sentiu. Talvez um aceno, algo ralo, desse ar que vinha pela porta da sacada. E em vez de dobrar à direita, Lia seguia sem pensar para a porta.

E ali ficou parada.

Enquadrada pelo limiar, pelo alisar, pelo caixilho de madeira clara se postou, imóvel entre as coisas estáveis (carro nenhum, nem vozes, insetos…). Sentindo no corpo todo exposto um vago sopro um pouco morno daquele primeiro vento que nem sabia ainda se seria — ou se inventado — ela cheirava o mundo aberto à sua frente. Escuridão. Silêncio e paz. E só. Parada no ar parado de inda há pouco, Lia agora sente o vento. Tocada pelo vento. Movida só por dentro.

Olha lá. Um corpo nu tocado pelo mero ar.

Mulher pelada embalada no vento primeiro.

O mundo inteiro à sua frente. E, no alto, milhão de estrelas lindas por consolo.

Boas vindas.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima