Lia – Capítulo 2

Romances podem ser como filmes. Este é como um álbum de fotografias.
Como fotos, os capítulos podem ser lido por si sós. Como álbum, o romance pode ser lido em qualquer ordem: o que lhe dá sentido (nos dois sentidos) é a vida que registra.
Lucília Paula Kappelhoff, a Lia.

Leia o Capítulo 1.

1955. Cabelo emplastrado, pesado. Pés inchados. Foi mais demorado do que ela pensava, e apesar do que a mãe tinha dito e de tudo em que pôde pensar meses antes, foi muito mais só. 

Os outros conversavam, ela tentava acompanhar para ver se precisava se preocupar com alguma coisa. Qualquer coisa. Para descobrir se estavam preocupados. Pelo menos nessas horas tinha isso em que se prender. Mas por um outro período, de novo longo, ficou totalmente só. Fisicamente só. Com dor e sozinha.

Foi só quando a parteira entrou e ficou alarmada. Só aí é que também ela pensou que não devia ter sido assim. Não devia ter durado tanto tempo assim, a espera. O médico, quase arrastado por aquela mesma parteira, entrou meio distraído, envergonhado, então.

Fórceps. E a menina nasceu.

Mas tudo em ordem. Tudo, quase, como devia ser naquele primeiro momento das duas.

Agora estava deitada, emplastrada, cansada. Com a menina por cima do peito inchado. E uma enfermeira mirrada que acabava de sair (o vento da porta soprando meia dúzia de fios de cabelo na cabeça miúda da nenê). Tranquila. Olhinhos pesados, fechados. Mãos minúsculas cerradas. Unha, só se via no polegar. Umas coisas de papel. Casquinhas. Rugas.

A boca mexia. Queria peito.

E ela se deu conta de que a sua estava virada. A boca. A vida e a boca. Cantos para baixo enquanto forçava o rosto todo para olhar a nenê sem erguer demais a cabeça do travesseiro.

Pesada, emplastrada. Toda inchada.

E o marido ainda ia querer dar o nome da mãe. Nome de velha.

Cansada.

2013. Lavando louça. Entregando as coisas mais leves, as de plástico, para a menina “enxugar” e deixar em cima da cadeira logo ao lado. Equilíbrios precários. Depois ia pegar tudo de novo e secar de verdade. 

A menina sempre ficava perto demais. Sempre grudada nas pernas, trombando no seu corpo com os cotovelos enquanto lidava com o pano de prato que largava uma ponta no chão. E cantarolava, o tempo todo.

De repente ela lembrou. Foi brusco mesmo, foi bruto. Lembrou da expressão da mãe quando pedia um favor, quando dava uma ordem e ela atendia de alguma maneira qualquer. De qualquer maneira que não fosse exatamente a que a mãe pretendesse, sem que a mãe tivesse dito o que queria, de que modo.

Me alcança a travessa branca.

Ela alcançava a travessa branca.

Mas a outra. A quadrada, meu Deus. 

A mãe que nunca a chamou pelo nome, de escolha do pai. A mãe que a rebatizou ainda no hospital, e com isso criou a pessoa que foi para todos, a vida toda. Deu-lhe nome mais que o cartório e o padre. Lia.

E aquela expressão; aquele olhar.

Precisou passar dos cinquenta para entender o que era aquela cara da mãe quando recebia a travessa redonda. A mais pura manifestação de que você confirma sempre as minhas piores suspeitas, Lia. A cada momento, Lia.

Bruta.

Cansada.

1974. Nova demais, meu Deus. Jesus amado, nova demais. Uma morte tão brusca. 

Coisa assim inesperada. Uma hora o coração está lá, empurrando sangue, erguendo o corpo da gente. Tudo de pé. Aquele sangue todo empurrando a gente pra cima. Aí, depois, do meio do nada, mais nada. Para. 

O médico disse que era como se o coração tivesse convulsão. E parou. Tudo. Cedo demais. Era nova demais.

Lia estava encostada no caixão, olhando para baixo, vendo de cabeça para baixo o rosto da mãe. A mesma cara fechada, pesada, irritada de sempre. Mas assim virava quase um sorriso. Virado. Como se a morte tivesse dado jeito. Como se desse jeito numa vida inteira, acabada. A morte, que não era mais nada. 

Não tinha mais nada pra arrumar. Não tinha mais vida.

Só a dela. A do pai. A mãe foi embora. 

Do meio do nada. Deixou a gente. O que ela fez, na vida, ela deixou na vida pra trás. O que ela fez na vida foi eu.

Coitada.

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