Lia – Capítulo 17

Ela estava andando por uma calçada estreita. Andando por uma calçada estreita que cobria um pedaço de terra que na sua infância era só terra. Uma calçada que não existia 40 anos atrás. Estava andando de cabeça baixa, dia frio, clima feio, rotina da cidade, rotina da vida de Lia. Ou nem tanto. Estava cansada. Desanimada. Estava ela própria gelada por dentro. Mais do que morta: cansada. Menos que viva. Um pouco torta, um tanto fraca, sem graça, sem vontade de buscar alguma graça, alguma coisa. Em suma, era um dia comum numa vida cheia de dias em que o comum é nem sentir a vida de verdade. Achar que ela às vezes mais parece uma história, e história daquelas mais falsas, onde tudo faz sentido, onde c se segue a b que decorre de a. Porque sim. Sim. Uma história falsa com porquês. Lia estava cansada. Mas mesmo de cabeça baixa, passo apressado, num dado momento não pôde deixar de perceber os passinhos à sua frente. Perninhas pequenas gorduchas em meias de lã calombudas. Perninhas roliças curtinhas que escapavam de botas ortopédicas e se escondiam na campânula de um casaco vermelho que seria do tamanho certo, se tudo desse certo, somente no inverno seguinte. Ou no outro. A menina ia levada pela mão da mãe. Ia algo puxada pela mãe apressada que a segurava com a mão direita. Ela, menina, mão esquerda erguida bem alto, meio torta pelo esforço que espelhava o esforço do passo puxado, apressado, na direita parecia ter alguma coisa. Lia naquele dia via a menina como se visse a vida pela primeira vez. Foi sem explicação. Mas aquela menininha embrulhada em cachecol e touquinha de crochê de repente lhe pareceu o antídoto, a voz de tudo que não era morte. A possibilidade. Lia se deixou ficar à mesma distância, contendo o passo que em segundos a teria levado ao outro lado da menina, passando por ela. Ficou-se por detrás. Só olhando encantada o bamboleio da menina errada, linda, encantada. Que, ela também, desconfiada, queria como que espiar por cima do ombro para ver de quem eram os passos que decerto estava ouvindo. Ela sabia. Conhecia a presença de Lia. Mas não podia virar sem se desequilibrar. E quando pôde, o quanto pôde, guinar o pescoço fazendo quase um pé pisar no outro, Lia viu que ainda por cima usava óculos tão grossos… O que ia poder ver? E foi nesse momento também da torção da menina inteira por dentro do sino vermelho que Lia viu o que ela levava na mão. Bonequinha barata, antiga, de cabeça encaixada molenga. Lia quis se dar a ver, quis que a menina soubesse. E, no fundo, não resistiu ao todo impasse. Se ficasse, só via a menina no futuro, à frente, inacessível. Se passasse, perdia a menina de todo, passada a passada. Atravessou a rua, a rua estreita. Em pouco tempo, do outro lado, retomava o ritmo que lhe permitia emparelhar com o par do outro lado. Com o trio. Chegou à altura delas. Olhou para a menina já com um sorriso tomando-lhe o rosto. Aquela menina era tudo. Aquela menina era um anjo. Aquela menina era Lia de novo, era vida. Foi quase meia quadra na mesma toada, ao lado da menina, uma rua inteira no caminho, lado a lado. E a menina não olhava para Lia. Ela quase sorria, cabeça baixa, óculos de aros imensos e lentes impossíveis. Corada de frio? Vergonha? De Lia?

Então ela soltou a mão da mãe, por mero segundo. E mantendo ainda a boneca espremida contra o peito do casaco, segurou por trás sua cabeça, que girou para o lado da outra calçada. Para que ela, a filhinha, pudesse com o único olho que tinha, olhar de verdade e ver Lia.

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