Lia – Capítulo 11

Foi uma coisa inesperada e perfeitamente perfeita. Tipo isso.

Ela tinha ido até São Paulo. Era para ser, era para ter sido coisa rápida, indolor. Sair de Curitiba cedo, almoçar na Paulista, compromisso à tarde, correr de volta para Congonhas. Coisa tranquila, que já tinha feito outras tantas vezes. E tudo começou dando certo

Decolou, pousou, almoçou. Teve tempo de dar uma caminhada. Chegou com sobra de adianto Rotina. Bem recebida. Alguns dos colegas ficaram depois para perguntar coisas, ou só para se dar a ver. Lia saiu no horário e chegou a Congonhas de novo com tempo. Comeu um salgado e um sonho, tomou um refri e se dirigiu ao portão.

Isso nunca tinha acontecido com ela, droga. Assim que encontrou o portão e fez que ia sentar e abrir um livro, o aviso no áudio. Voo cancelado! Voo cancelado? Voo cancelado…

Foi com o rebanho dos desvalidos até o balcão da companhia, conforme instruída. Quando chegou sua vez de ser atendida não tinha mais lugar no voo seguinte. A moça, com a consternação de plástico de quem todo santo dia dá notícias más mas irrelevantes, disse que a empresa ia pagar uma diária e o transporte até o hotel. Fazemos questão. Lia voltaria para casa só na manhã seguinte.

*

O quarto era pequeno, mas ok. Ela não era exigente, e só queria descansar. Tomou um banho meio morno num chuveiro minguadinho (por sorte levava sempre uma calcinha e um kit de emergência na bolsa) e caiu na cama. Se ajeitou um pouco, apagou a luz e… sentiu frio.

Nada de conseguir dormir com aquele frio. Levantou, fuçou um pouco no armário do quarto e encontrou mais um daqueles cobertores esquisitos que parecem feitos de alguma coisa recliclada, mas que são quentinhos, apesar de leves daquele jeito. Colocou simplesmente por cima do outro e deitou de novo.

Fria. Gelada. Impossível dormir. Não ia ser assim tão simples.

Levantou de novo (o humor a essa altura já não estava em seus melhores momentos) e pegou a colcha grossa que cobria a cama quando ela chegou. Colocou por cima dos dois cobertores. Deitou de novo, apagou a luz de novo, fechou os olhinhos, esperou e ficou com frio. De novo com frio, santa madre.

Ah, cacilda. Ai, santa madre. O ar-condicionado. Tinha uma fresta de uns dois dedos entre o aparelho e o buraco em que ele se acomodava na parede, nitidamente feito para outro, maior, de tempos mais antigos. Daí o ar frio. Do ar-condicionado, quem diria. E o quarto não tinha mais cobertores. E pelo jeitão do rapaz da portaria a Lia não tinha a menor vontade de falar com ele.

Frio.

Irritação.

Cansaço.

*

Mas foi aí que tudo mudou. Foi aí que ela decidiu encarar de frente o problema com o que tinha à mão. Carregar o peso que fosse necessário. Levantou de novo da cama, puxou dali a colcha e os dois cobertores. Depois de um segundo pensando se era mesmo o que lhe restava, Lia dobrou os dois pela metade (eram de casal, ou quase isso, e ela era pequena). Estendeu tudo aquilo bem retinho na sua metade da cama. Com a colcha, fez o mesmo, criando uma capa bigrossa para seu prospectivo sanduíche de Lia.

Olhou sua obra e deitou.

Se acomodou. Lia ficou deitada, luz apagada, e esperou um pouco. Acomodada.E foi lhe vindo um sorriso todo novo.

O peso daquela roupa de cama dobrada a transformava numa panqueca inamovível, contida em si própria, presa no calor que emitia sozinha, feliz e prensada. Aquilo era como um abraço, e infantilmente ela via que parte da tal felicidade repentina vinha de seu orgulho de ter sido capaz de resolver com as parcas armas que o destino lhe dera tal problema termodinâmico, completo e assim tão fundamental. Remexeu delicadamente as pernas, montou uma garaginha nos cobertores e ali acomodou os pés. Com as cobertas acumuladas debaixo do queixo, Lia de costas era múmia, um bebê, um pãozinho na forma.

Dormiu feito um anjo.

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