Home office

Meu bumbum dói pela terceira vez do dia. Me ajusto na cadeira e assim lembro que eu tenho uma coluna vertebral. Se o reflexo da porta de vidro fosse sua única visão de mim, com certeza você me identificaria como um molusco asqueroso, considerando a maneira como eu estava arqueada. Outro detalhe sobre mim, me ocorre: sou um ser humano e preciso de água. Olho para a garrafa que comprei alguns meses antes, ignorando o anel de água se formando na escrivaninha de madeira. Está 75% cheia. Bom, pelo menos bebi algo. Ergo ela até meus lábios, sentindo a condensação da água em minhas mãos.

Meus olhos percorrem o recinto. Eles pousam em vários objetos: um porta-retrato com uma moldura de arabescos; um peso para papel que também atua como ímã de geladeira; o  prato com a embalagem e farelo de uma barrinha de cereal, até voltar para a tela do meu computador. Certo. Tenho seis horas para terminar três tarefas do trabalho. Uma é fácil, poderia fazer dormindo. Provavelmente vai levar trinta minutos do meu tempo, então está tranquilo. A segunda é mais complicada. Requere criatividade extra, pois eu nunca cheguei perto de fazer algo parecido. Preciso de tempo para pensar e bolar algo, mas provavelmente vou me sentir inspirada assim que acabar a primeira. Já a terceira, tem um prazo maior e eu dependo da colaboração dos meus colegas de trabalho. Reviro os olhos. Gosto de trabalhar no meu tempo, e depender do planejamento dos outros muitas vezes atrapalha isso. Mas não posso reclamar, antes assim, do conforto da minha casa, do que uma chefe gritando comigo enquanto estou enterrada em uma cadeira péssima para minha leve escoliose.

Encaro a tela. Por ser home office, a empresa utiliza uma ferramenta para que todos cadastrem suas horas e o tempo que levou para completar cada atividade. Clico no botão que registra que estou iniciando uma.  Leio a descrição da tarefa três vezes. É algo fácil, mas chato de fazer. Que preguiça. Me alongo, inclinando para trás na cadeira. Ontem trabalhei tão bem. Fui rápida e eficiente, entregando tudo horas antes do prazo. Mereço uma recompensa.

Vou até à cozinha levando meu prato. Não tomei um café da manhã decente às oito da manhã, mas agora que são nove e meia eu acho que mereço. Coloco uma chaleira cheia no fogão e separo o pó de café. Enquanto a água ferve, pego o saco de pão, uma banana e ovos. A banana está com algumas manchas pretas, então troco por uma de aparência melhor. Pego a mais firme e verde e prossigo.

Levo os dois ovos caipiras selecionados para a pia. Estou limpando-os bem, quando de soslaio vejo uma mancha no chão. Me agacho para inspecionar e CRACK. Um ovo se espatifa no chão de ladrilho. A substância gosmenta se espalha e me sinto possuída por preguiça mais uma vez. Mas, se eu não limpar, ninguém irá e as consequências de uma queda poderiam ser desastrosas. Guardo o outro ovo de volta e prossigo a limpar o chão.

Uma pontada de culpa me atinge, e percebo quanto tempo – e comida – eu desperdicei. Preciso fazer algo tão simples, escrever um artigo de dicas para o blog de um cliente. Okay, vou terminar de comer rápido e voltar. Termino de preparar o café e coloco o pão com uma fatia de queijo na sanduicheira.

Minutos antes dela apitar, uma ideia me ocorre: “Receitas práticas e rápidas de café da manhã para começar bem o dia”. Ahá. Meu método de se afastar da tela por um tempo para deixar as ideias fluírem funciona muito bem, não devo abandoná-lo tão cedo. Corro para o escritório e anoto o título. Aproveito que estou com a bola andando e escrevo três linhas enquanto estão frescas na minha cabeça, e em alguns minutos retorno rápido à cozinha, me sentindo mais leve. O pão está quente e crocante, o café forte e doce. Satisfeita comigo mesma, abro o aplicativo de notícias no celular para acompanhar o mundo enquanto eu como. Inflação aqui, crime ali, fome lá. Mortes e desastres frustrantes. Suspiro, simpatizando com as vítimas das reportagens. Parte da minha consciência me dá um tapinha nas costas por ser uma boa pessoa e me importar com isso. Mas boas pessoas não precisam de um tapinha para serem boas, então me sinto conflitante. 

Após lavar a louça com a mente um pouco atordoada, volto ao escritório, onde abro no computador a plataforma que a empresa usa para comunicação interna. Vejo que tenho dez notificações. Ugh, que ótimo. Uma reunião de um tema com qual eu não tenho relação nenhuma, porém sou obrigada a comparecer. Meus olhos viram tanto para a parte de trás da minha cabeça que chega a doer, e por um micro segundo tenho medo que eles não irão voltar. Desperdício de tempo em que eu podia estar trabalhando. Mando mensagem para meus colegas perguntando sobre o progresso da terceira tarefa, em uma tentativa para adiantar as coisas e deixar claro que já estou querendo fazer minha parte o mais cedo possível. Minha consciência fica um pouco mais limpa.

O relógio na mesa me diz que já são onze horas e eu não fiz nem um terço do que preciso fazer. Onze horas? Mas daqui a pouco é a hora do almoço. Não dá para terminar nada em uma hora. Talvez eu devesse ligar a Netflix só por uns minutinhos e…

Não. Chega de distrações. Muitas coisas podem ser feitas até lá. Posso fazer o planejamento do artigo para a produção do texto fluir naturalmente depois, e iniciar a pesquisa da segunda tarefa. Certo.

O texto não é complicado de bolar. Escolho tópicos de interesses gerais, pesquiso alguns fatos curiosos, lembro de usar um toque equilibrado de senso de humor para que a leitura fique dinâmica e voilà: o texto está 90% feito. Só preciso revisar depois, mas revisar é ridículo. Ridículo de chato, isso sim.  Mas algo que facilmente pode ser empurrado com a barriga, pois é melhor esperar o texto esfriar antes de revisar.  Ah! Escrever é tão bom. Eu devia parar de enrolar tanto, esse fluxo é tão gostoso.  Daqui para frente vou começar a ser mais disciplinada, assim posso melhorar ainda mais na minha escrita.

Okay, agora só começar a pesquisa da próxima tarefa. Hm… nunca fiz nada para este cliente antes então vou pesquisar o perfil deles melhor. Abro algumas abas novas no meu navegador, resultando em trinta e três no total, e pesquiso outros exemplos do que eu preciso fazer. Em meu celular, cometo um erro fatal: clico no ícone rosa e laranja do Instagram para procurar o perfil do cliente e rapidamente me perco em um labirinto sem fim.

A Fernanda do ensino médio vai se casar? Tão estranho pensar que gente da minha idade já está casando… Caramba, não sabia que isso estava acontecendo no Oriente Médio. Aww, que cachorro mais fofo. Nossa que agenda linda, acho que vou encomendar. Estou no meu quinto buraco negro quando me lembro o porquê de eu ter entrado no aplicativo. Entro no perfil do cliente e os números na parte superior da tela me dizem que  já está na hora do almoço. Preciso comer para ter tempo de me arrumar para a reunião de videochamada depois. Ah, que pena…mais uma pausa. Eu conseguia quase ver o sorriso demoníaco da minha personalidade procrastinadora.

Não. Chega de distrações. Muitas coisas podem ser feitas até lá. Posso fazer o planejamento do artigo para a produção do texto fluir naturalmente depois, e iniciar a pesquisa da segunda tarefa. Certo.

Algumas horas depois me sinto extremamente entediada. A reunião se estende de maneira desnecessária, ao ponto que o tema discutido não é mais sobre o trabalho, ou algo que eu sequer entendo. Quero procurar vídeos e informações para minhas tarefas, mas assim que eu muto a reunião (apenas por alguns minutos) quando eu ligo meu microfone de volta, vejo que estão esperando uma resposta minha, de uma pergunta misteriosa.

“Oi, desculpa gente minha internet caiu aqui. Vocês podem repetir?”

“Estamos perguntando se você concorda.”

“Se eu concordo com…?”

“A nova ideia do cliente.”

“Ah, acho que sim, né?”, eu chuto.

“Ótimo! Então você vai ser a responsável na tarefa. Esperamos uma lista de ideias até amanhã. A descrição estará na plataforma.”

“Ótimo”, confirmo, sem saber que diabos estamos falando.

A reunião acaba e eu saio da ligação. A tela escurece, e um aviso de baixa bateria aparece no canto. Isso permite que eu veja meu reflexo no laptop. Estou com uma cara de sapo horrível. Mensagens respondidas? Nenhuma. Progresso na segunda tarefa? Pouquíssimo. Tenho dois parágrafos e olha lá. Com um sobressalto, saio da cadeira. Minhas costas estão um nó, então resolvo me esticar no chão por alguns minutos e alongar o corpo. Dou uma breve caminhada pelo apartamento, como se estivesse visitando o espaço pela primeira vez, até finalmente retornar para a cadeira de rodinhas. Giro ela para esquerda. Giro para a direita. Com uma força de energia quase mágica, consigo espremer outro parágrafo do meu cérebro, como se fosse pasta de dente de um tubo quase vazio.

Quinze horas. Me sinto exausta. Acho que essa foi toda a produtividade que consegui tirar de mim do dia. Arrastando os braços pela escrivaninha, tento anotar o planejamento do resto das tarefas, para facilitar  minha produtividade de amanhã. Quando acabo, minhas coxas estão grudadas na cadeira estofada de couro e preciso tirá-las com algum esforço. Levanto de novo, busco água e volto. Antes de sentar na cadeira, olho para a marca de suor que minhas coxas deixaram nela. Penso o quão envergonhoso seria se eu sumisse e aquela fosse a única evidência de que eu estava ali.

“Por onde começamos?”, perguntaria o investigador mirim do caso, procurando vestígios de que eu estava ali recentemente.

“Por aqui”, diria a delegada, apontando para a minha impressão suada na cadeira. “Ela esteve aqui apenas meia hora atrás. Não deve estar muito longe.” Neste cenário eles acreditam que eu fui sequestrada, pois, meus parentes afirmam que eu nunca fui de desaparecer sem avisar. Mas desta vez foi diferente. Eu só fui para Bahamas sem dar nem um tchau, sem olhar para trás e sem nenhum pensamento sobre o trabalho.

Suspiro e sento de novo.

Quinze e meia. Meu cérebro não consegue formar mais nenhuma palavra. A inspiração se dissipa e a imaginação está praticamente extinta. Sem controle, abro artigos de receitas que eu nunca vou preparar e testes do Buzzfeed. Só mais um teste e eu paro, eu penso, enquanto tento descobri que fruta tem a minha personalidade.

Volto para a aba do texto da minha tarefa. Penso em ideias para mais dois parágrafos antes de travar de novo. Tive tantas ideias excelentes no dia anterior… ideias geniais que eu nem sei de onde tirei. Estava tão inspirada, a chefe até me elogiou. Me senti tão bem… e hoje estou seca. Abro a tarefa do dia anterior. Aí sim, está um trabalho de qualidade. Mais de quinze ideias de slogan para o cliente, uma melhor que a outra. O conteúdo da campanha? Espetacular. Os anúncios? Super originais. Tem dias que eu surpreendo até eu mesma. Sem falar que eu estava tão inspirada que fiz tudo em questão de minutos, com várias alternativas de substituições para cada ideia. Fui tão boa que mereço uma recompensa. Droga, já usei essa desculpa hoje, não é? Bom, preciso esticar as pernas de qualquer jeito. É melhor eu voltar para a cozinha e pegar outra barrinha. Ou um doce, quem sabe?

Após lambuzar os dedos me enrolando com uma barrinha de cereais, estou no meio de uma guloseima de chocolate quando tenho uma ideia. Sei como acabar o primeiro texto de forma rápida, sucinta e ainda com uma boa escrita.

Volto correndo para a tela, limpo rapidamente os dedos em um lenço de papel e dedilho no teclado. Pronto! Finalmente concluí minha primeira tarefa do dia. Olho para o relógio: Quatro e quinze. Nem consigo pensar em começar de verdade a segunda tarefa, ainda menos a terceira.. E certamente não acabaria nenhuma delas em uma hora e meia.

Mas tudo bem, posso terminar o resto amanhã. Amanhã será outro dia.

Amanhã será melhor.

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