Dia da Mulher

Acordo com uma facada na parte inferior do meu corpo. Relutantemente, abro os olhos. Movo o lençol envolto em mim e encontro uma mancha de sangue vermelho-Tarantino. A faca não está literalmente ali, mas poderia muito bem ter sido o trabalho de uma. Frustrada e ciente que este início de dia irá definir o tom para os próximos por vir, vou ao banheiro e verifico o que já sei.

Sentada na privada, olho para os dois absorventes noturnos estrategicamente posicionados na minha calcinha. Um ocupa a parte inferior e o outro a parte posterior, para não sobrar espaço para erro. A menstruação estava biologicamente programada para vir em dois dias, mas resolvi me planejar mais cedo caso acontecesse algum incidente. É claro que mesmo tentando calcular os golpes do meu corpo, ele já estava três passos à frente. O filho da puta não só menstruou mais cedo, mas mirou para fora, focando no buraco da direita para que nenhuma gota atingisse os absorventes, e elas fossem direto para o lençol fresquinho, trocado apenas alguns dias antes. Às vezes, imagino que ele faz isso de vingança. “Pulou refeição, é? Não tomou água o suficiente hoje e me deixou para lidar com as consequências? Você vai ver as consequências agora.” Babaca.

Em textos motivacionais, seja com imagens genéricas do pôr do sol no fundo,  formatos que claramente indicam que vieram de um print feito por uma senhora e postados nos status do Facebook com emojis de mãozinhas unidas, ou com fontes modernas feitas por influencers/coaches de Instagram, encontramos frases como “cuide do seu corpo, ele é a única casa que você tem”.  Ou a clássica, “trate seu corpo como um templo”, e toda aquela frufruzice que todo mundo conhece. Sei que as intenções são boas e eu concordo com a mensagem, mas cara… Elas realmente não se aplicam quando seu corpo parece estar constantemente tentando sabotar você. E acredito que, no fundo, as mulheres postam essas frases motivacionais para não deixar transparecer que elas também se estressam com dias em que o cabelo se recusa a ficar sem frizz, ou a pele que recebe água de pepino, boa nutrição e dez mil medicações prescritas por dermatologistas ainda dá espinhas de surpresa para seu aniversário.

Eu abro o armário embaixo da pia e avalio minhas opções: o copinho é a mais efetiva, mas estou com uma preguiça enorme de mexer meu corpo como uma trapezista só para fazer ele entrar, então pego o absorvente interno e o externo também.

No pacote de plástico do segundo, há uma mulher com os braços abertos em um campo de flores. Ela está com peitos erguidos, postura perfeita e um sorriso que vai de orelha a orelha. Reviro os olhos.

Ao lado dela está escrito “edição especial do mês das mulheres, compre oito e leve nove!”. Se a modelo estivesse realmente menstruada ela provavelmente ficaria em posição fetal, chorando no meio do campo dos girassóis, levantando apenas para pegar o produto. Esse sim, seria um bom anúncio e apelaria para o emocional.

Olho para meu celular. O relógio diz que são cinco e quarenta e eu sei que não vou conseguir voltar a dormir. Tiro a roupa de cama e coloco ela de molho, após colocar uma chaleira para ferver.

Justamente quando o meu horário de trabalho começa e abro meu computador, recebo o segundo golpe, desta vez na cabeça. Uma enxaqueca aloja-se na parte frontal e eu sei que gradativamente ela vai aumentar, se espalhando pelo meu crânio como uma cobra rastejante perversa  Independentemente disso, eu persevero, conferindo minhas tarefas do dia. Todas estão relacionadas com o Dia da Mulher. No mundo da publicidade, datas comemorativas são como vacas de dez tetas, de onde empresas tentam tirar o maior proveito possível. As instruções são basicamente as mesmas de todos os clientes: preciso criar campanhas, slogans e manifestos destacando como a mulher é poderosa, determinada, resistente, forte… 

Apoio a cabeça nas mãos assim que chego no segundo parágrafo da descrição de uma tarefa:

“Precisamos lembrar que mulheres passam por desafios constantes e destacar histórias de superação, como alguém que foi assediada em público, por exemplo. Ou o fato que às vezes elas precisam andar à noite com a chave de casa na mão.” Não preciso terminar de ler para saber exatamente o que está sendo exigido. Somos super heroínas ou vítimas, pois sermos humanas não é lucrativo o suficiente. E não parece que o público destas propagandas sequer são mulheres. O engraçado é que se fizessem conteúdos com mulheres visivelmente cansadas e de saco cheio, com olheiras debaixo dos olhos e um coque bagunçado, isso apelaria muito mais para a ideia de mulheres reais, fazendo com que nós nos identificássemos mais com o produto, sem falar que seria uma estratégia de marketing original.

Mas escrevo o conteúdo mesmo assim, dando o povo o que eles querem. Quando termino, uma notificação acende na tela do meu celular: preciso encontrar o cliente para uma reunião sobre um novo produto. Tentando correr com uma cabeça latejante e um útero inchado, eu vou de encontro com meu armário procurando um modelito mais formal, que não fosse branco, mas confortável na medida certa. Encontro jeans e uma camisa social que combinam muito bem. Enquanto me apresso, sinto a cabeça piorar ao passar um perfume e encaixar o pé em um pequeno salto. Verifico a bolsa para conferir o estoque de remédios necessários para a jornada e saio de casa com uma garrafa térmica com café na mão, já que não tive tempo de tomar um café da manhã decente.

Chegando na reunião tudo parece estar em ordem. A cabeça está um pouco melhor e não sinto cólica faz uma hora. Confiante, sento à mesa de madeira com alguns membros da empresa e tiro meu laptop da bolsa, pronta para fazer as anotações. A conversa é bem produtiva e conseguimos pensar em várias ideias novas para a próxima campanha, quando sinto que estou esquecendo de algo. Será que deixei algo passar? Trouxe os remédios, a roupa certa, estou com absorvente, tenho lenços na bolsa, álcool em gel, e…

“ Buurgh”, ouço minha barriga fazer baixinho. Ah, não. Não, não, não. “Bluupt”.

Ah, claro, como pude esquecer a cereja do bolo? O inescapável dos escapáveis gases? Olho para a garrafa térmica na minha bolsa, que já está vazia. Café preto com açúcar: a receita perfeita para saciar o paladar e criar situações de pânico em momentos inapropriados. Estou no meio da reunião, não posso fugir agora. E mesmo se eu pudesse, quem sabe quanto tempo iria levar? Afinal dores de barriga são cheias de elementos surpresa. A única solução é ficar aqui e esperar.

À minha volta há quatro funcionários da empresa e os dois diretores sentados diretamente à minha frente, que não param de falar sobre os novos produtos. Considerando suas feições e cabelos levemente grisalhos, acredito que ambos estão na casa dos quarenta.  Cruzo as pernas, tentando, da melhor forma possível, prender o que sei que está por vir. O diretor de paletó azul está me mostrando um perfume feminino e usou a palavra “sensual” três vezes na mesma frase. Ele também disse algo sobre como o perfume é uma homenagem no mês da mulher, mas não parecia ser um presente voltado a elas. O outro diretor, com uma camisa abotoada para dentro da calça, fala sobre a importância do perfume para que as mulheres se sintam bem e confortáveis. Parte de mim realmente gostaria que isso fosse verdade naquele momento, principalmente nos segundos seguintes.

Um odor silencioso sai de mim e me sinto impotente, ciente que eu não tenho como impedi-lo.

“Posso experimentar?”, pergunto sorrindo, tentando esconder meu nervosismo.

“Mas é claro!”, o de paletó azul responde, passando o frasco para mim. O vidro é vermelho, em formato de um torso feminino. Antes que alguém possa sentir meu aroma natural, espirro o conteúdo em volta de mim. O cheiro é levemente azedo, com uma nota doce no final. A moça que está ao meu lado faz uma careta sutil e eu não tenho certeza qual dos cheiros ela captou, ou se pior ainda foram ambos.

“Realmente, muito bom!”, respondo entusiasmada, apesar de sentir minha pele ficar um pouco grudenta.

Conversamos sobre o produto pelos próximos vinte minutos e eu proponho algumas ideias de campanhas que podem ser feitas, enquanto eles acenam, sorriem e concordam.

“Ainda não temos um nome para ele, então gostaríamos da sua opinião nisso também.”

Aproveito que ainda estou com o frasco em minha mão e quando espirro o perfume no ar, deixo escapulir um pouco mais, sentindo alívio.

“Ele remete à relaxamento, clima de massagem, talvez a ideia de sauna pode ser aplicada. Um nome curto e sedutor a partir dos ingredientes. Vou estudar um pouco mais e retorno com mais ideias no final da semana.

“Que ótimo! Bom, não queremos te apressar, mas temos outra reunião em breve”, o de camisa abotoada levanta, pronto para sair. Eu espelho seu movimento e todos nos despedimos na porta.

“Ah! E parabéns pelo dia da mulher!”, ele diz, estendendo o braço para um aperto de mão.

Eu não inventei o dia da mulher. Eu não venci o câncer de mama.  Eu não fiz nada significante para a luta das mulheres e eu não escolhi ser mulher. Minha maior realização do dia foi ter conseguido tirar a mancha de sangue do meu lençol usando Vanish Poder O2. O melhor momento que vou ter hoje vai ser ficar sozinha em casa sem calça, atacando um pacote de salgadinho. Mas o dia da mulher não é, realmente, para nós. É para que outras pessoas se sintam bem nos reconhecendo por um dia no mundo dos homens.

Mas estico meu braço mesmo assim:

“Muito obrigada”, respondo.

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